Aconteceu-me já faz um tempo...no período fatal de transição entre medicamentos. Era o segundo dia sem nenhuma forma de antidepressivo em meu corpo....e mesmo que o dito, na prática, nunca fizera efeito, não a cabo, não a ponto de resolver meus "problemas", nem os mentais nem mesmo os físicos.
Mesmo sabendo, que poucos problemas físicos de verdade possuo, ainda estava imerso no péssimo porém mui saboroso e agradável para quem o pratica - o hábito de fumar os cigarros "caretas", de palha...e sabia, que àquela hora da noite, despertar assim de repente só poderiam significar duas coisas, dentro das mais prováveis: ou vontade de ir ao banheiro...ou o maravilhoso estágio de sufocamento causado pelo consumo de semelhantes fumos em meus pulmões.
Em verdade - era um pouco das duas coisas ao mesmo tempo. Sim, queria usar o banheiro, e sim, estava chiando feito velho fole, sabendo que precisaria de inalar um pouco de Salbutamol -ou sei lá como se chama o princípio ativo naquelas bombinhas...
Bem, me aliviei do excesso de líquido acumulado e fiz uso do dispositivo para pessoas irresponsáveis, feito eu. Resolveram ambos problemas. Mas aconteceu que, "aquela hora da noite, como é de meu costume, não ligo a luz do quarto, mas sim o abajur que existe por cima de minha mesa. E, na penumbra da noite, vi o reflexo difuso de um Monstro nos vidros empoeirados que existem à janela.
Exasperadamente, sabia que o sono não voltaria assim que retornasse à cama, pois sentia um peso por cima de mim, prestes a me esmagar: o peso da existência, mesmo sendo ela inexistente, para a maioria das pessoas...que não sentem, deveras, tal peso. Pois são normais, são mentalmente estáveis, são mentalmente sãs.
Àquela hora, tudo que eu nãopossuía, de fato, era sanidade. Já estivera no médico, já iniciara o tratamento, já era o terceiro dia de abstinência completa de antidepressivos em meu corpo, em meu SNC. Olhei ao redor, as sombras ainda se tornavam mais vívidas e sombrias, àquela hora: 2:35 da manhã. Aliás, tudo lhe parecia mais sombrio, mais desprovido de vida, ao seu redor. Ainda que de fato, não havia por ali vida, ou mais precisamente, vida para além dos insetos, parasitas, aranhas e outros seres vivos entocados, escondidos pelos cantos, alguns deles circulando em busca de comida em tão fértil solo, repleto de poeira e restos de tecido, não havia nada de propriamente vivo ali.
Havia somente ele. Ele, a vislumbrar, o reflexo ainda mais deformado que o de costume, de um Monstro a se olhar na penumbra. Monstro, que ali estava residindo há dez anos initerruptos. Que tornara-se um moderno eremita, isolando-se de tudo e todos, para poder fazer tudo que queria...e algumas coisas, que, pensando bem, não queria nem deveria ter feito.
Àquela hora, o peso do tempo parece ainda maior, principalmente quando a causa da insônia é o mero fato de que seu corpo, tão habituado à tal inútil substância, ainda que não fizesse efeito prático, agora dela havia sido privado, e subitamente. E tal e qual, era sim, dependente de tal droga. Ainda. Pois sentia amplificados todos os sentimentos negativos que lhe afloravam à mente, como uma procissão de bolhas, muitas bolhas, a subir à superfície de seu pastoso cérebro, e estourarem todas como alguma forma de dor, ou sentimento ruim. Tudo estava amplificado, de fato. Distorcidamente amplificado, para ser mais exato.
Não saberia explicar apara ninguém o que significava ter aquela espécie de "bad trip" da abstinência do inútil remédio em seu organismo. Se nem para ele, fazia o menor sentido, como tentar explicar aos outros? 2:40 da manhã. Nenhum vislumbre de um sol, apenas o oscilar permanente das poucas luzes da cidade que podia vislumbrar de seu quarto. Pareciam-se com irregulares estrelas, ao chão. O vento uivave, em notas ainda mais lúgubres naquele exato instante...naquele exato estado de mente que o corroía por dentro, e por fora.
Sabia que não devia, mas apanhou o maço de falsificados cigarros de palha. Coyote! 70% palha, 20% tabaco, 10% nada. Fizera seu nome e tornara-se uma bela duma porcaria. Mesmo assim, sabia que talvez um pouco de nicotina o acalmaria, naquela noite, naquele estado nada fugaz da mente vazia, os olhos estranhos, sensção de vazio dentro da cabeça, acoplada à outra inexplicável sensação, a de se ter todo seu SNC solto por dentro da cabeça. Tentava etentava explicar, ninguém entendeu. Ninguém entenderia. Ninguém, a não ser ele próprio, entendia o que era se sentir daquela forma, onde tudo significava desespero, irritação, nervosismo, medo, angústias, tudo misturado no caldeirão da abstinência.
Viu no reflexo a brasa acesa do cigarro, a nuvem de fumo por ele expelida. De fato, 70% palha. Porcaria de treco falsificado. Mas era o que tinha, teria de servir. Apanhou a lata que servia de cinzeiro e continuou seu ritual nada saudável, mas ainda assim, o fazia em busca de alguma paz, algum sentido, para aquela noite malfadada. 2:50. Os minutos não passavam, as horas não passavam, passavam em sua mente, como um show de slides, tudo que havia feito de errado ou incorreto até então. Tudo de ruim. Nada adiantaria, se lhe gritassem ao pé do ouvido: "PARE COM ISSO!" Ele nem sequer escutaria, tamanho era o transe errado.
Assim como no dia anterior, sentia-se desmoronar. Sentia que tudo era pesado, extremamente pesado, não conseguia nem sequer fumar direito, os braços eram como se feitos da mais pesada e viscosa geléia. No dia anterior, após ter passado um final de semana em retiro, não muito espiritual, mas ainda assim Retiro, das Pedras, ele havia conseguido segurar suas pontas, não dar escândalo, não gerar desconforto em seus hospedeiros. Mas, quando se viu ali, novamente em sua Torre, sua solitária, sentiu aflorar tudo que sufocara por meio de inúmeras baforadas no final de semana.
Caiu ao chão, gritou, berrou, esperneou, misturou tudo, sensações de dores físicas causadas pelo impacto ao chão e as mentais, causadas pela merda da droga que não mais havia em seus sitema, que havia se habituado à porcaria, ainda que não fizesse, de fato, efeito prático algum em sua conturbada cabeça. E agora, sem ela, perdia o controle com facilidade...desde que não estivesse em seu emprego - onde tal episódio significaria sua demissão - e nem na casa de seu anfitrião Retirense, que não queria que o visse naquele estado. Berrou, babou, chorou, riu, tudo misturado, enquanto rolava pelo chão. E achou bom que àquela hora sua progenitora não estava em casa, pois em sua última exibição de semelhante descontrole total dos sentidos, causada pelo episódio em questão, sua mã fora-lhe extremamente seca e até mesmo desagradável, transformando seu desepero em ira, que a dirigiu diretamente em sua cara, para seu espanto. Não aceitava o gesto, mesmo assim ele o repetiu. Vá pro inferno.
E àquela hora, inferno era o que estava novamente acontecendo em sua insone mente. No dia anterior, entretanto, não estava, de fato sozinho em sua casa, e seu inferno atraiu a atenção de sua irmã, que fizera o possível por ele, algo que sua própria mãe negara-lhe quando presenciou tal episódio. A coisa mais humanamente possível e factível de ser feita, dar-lhe um abraço, deixá-lo chorar incoerentemente em seu ombro, proporcionar esta espécia de paz que só aparece nestes momentos.
Mas, às 3 da manhã, tudo era silêncio, todos dormiam, não queria acordar ninguém, não era hora de ligar pra ninguém, nem sequer poderia participar dealgum chat online ou algo que o valhesse. Não queria, não podia. Sentia-se fraco e só. Fraco, fraco, fraco, por estar se deixando abater por tal onda errada. E só, pois...estava, de fato só. Como sempre estivera, como sempre se entira, às vezes, mesmo rodeado de pessoas, de amigos...sentia-se só em sua dor, em sua solidão de existir sem deveras existir, de ser sem ser, de ser o que não era, e de ser o que era, de fato. Tudo era dor. Tudo. E não, não conseguiria explicar a ninguém, não acordaria ninguém, nada havia a ser feito, a não ser engolir as lágrimas, o choro, os gritos enterrados em sua garganta.
Não era hora de escândalos.
Porém, ouviu um grunhido familiar, vindo da penumbra rente ao seu computador. A luz do abajur estava virada para cima, virou-a para baixo. E lá estava, desperto, inquieto, bem acordado. Gideon.
Havia se esquecido dele, na escuridão reinante pela Torre. Iluminado pelo facho de luz do abajur, dava para ler seus pensamentos, pois eram, ambos, dois e um só, unidos por uma espécie estranha de comunhão de mentes. O dragão e seu dono. Suas orelhas pontiagudas estavam abaixadas, sinal de quem entendia, quem via o sofrimento e o sentia também, ainda mais ele, por ser ele um só, um ser só, criador e criatura, mesmo que não fosse de fato obra sua(jamais conseguiria entalhar um dragão com aquela precisão em sua vida), ele o sentia. E o entendia.
Ele chorava, mas agora, conseguia expor com mais facilidade a torrente de sofrimento. Ali estava quem o bem sabia ser o que era, oque é, o que sempre foi. Tamanha era a união entre estes dois seres - um real, porém às vezes imaginário, e outro imaginário, mas na maioria do tempo parecendo ser real...sem o ser. - Tossiu com uma baforada mais poderosa, olhou-se deformado no "espelho" da vidraça. E sentiu ainda mais dor, ainda mais tormento, a lhe afligir.
Em dado momento, sentiu o alívio que buscava, que todos buscam, em tais horas, o tal alívio que no dia anterior sua irmã havia proporcionado-lhe e sua própria mãe, negado. Gideon agora era de seu tamanho, e se enroscava ao seu redor, tomando cuidado para não ferir-lhe com suas garras. Tal mágica jamais seria explicada, tal mágica jamais será explicada. Apenas existe, sempre existiu, entre ambos. Entre criador e criatura. Sentiu o enroscar de Gideon em torno de seu corpo apertar-se um pouco, tal qual serpente que deseja esmagar sua vítima, mas não era o caso. Tratava-se de um abraço de um dragão.
Tudo que ele queria, tudo que precisava, naquele momento. E se tal entorno lhe fez espremer mais lágrimas, agora já não eram tão sofridas. O abraço de um drgão como Gideon, é díficil de ser remetido em palavras...é muito mais traduzido no plano dos sentimentos. Para seu dono, ele sempre representou tudo de bom que alguma pessoa, um amigo, possa lhe oferecer. Como foi o caso, quando o ganhou, naquele inesperado momento, em já esquecido final de semana. Mas representava isto, o bem, o alívio trazido pelo bem-querer, coisa assim. Sua respiração voltava ao normal, as lágrimas deixaram de fluir. Gideon o espremeu mais um bocado, como se quisesse transmitir-lhe suas forças, sua mágica. De ser o que era. Meu dragão.
Assim que o horror passou, senti-o encolhendo ao meu redor, ficando apenas de seu tamanho natural, mas ainda enroscado em meu pescoço. Enxuguei com as mãos o que restavam das sufocadas lágrimas e o deixei enroscar-se em meu braço, para depois devolvê-lo à mesa. Ficou me olhando, transmitindo seus pensamentos, suas esperanças, que nela nunca deixaram de existir, por ser magicamente construído. Arfou, um misto de fumo e fogo, e logo se refez enquanto peça "real" existente por cima da mesa.
Fui ao banhiro, mas não olhei no espelho, não queria ver o espelho, aliás, gostaria que deveras tivesse se espatifado quando tentei fazê-lo em vão, dias atrás. Mas não fiquei ali tempo demais. Escovei os dentes, para remover o gosto ruim do cigarro, apaguei a luz e me dirigi de volta para cama. Tendo obtido tal inesperado alívio naquela madrugada, consegui, de certa forma, repelir o restante das coisas ruins que teimavam em surgir em minha mente, sempre pensando em Gideon e seu inesperado gesto de carinho para com seu dono.
E funcionou, de certa maneira, pois logo logo, me vi devolvido à paz que todas as noites busco em meu dormir...