terça-feira, 2 de março de 2010

Mais um dia.

Manhã, novamente, manhã. O Noiado é despertado e olha preguiçosamente para a fonte daquele inoportuno som, aquele que conforme ele mesmo diz, "arrebatador de sonhos." Mais alguns minutos, nesta manhã cansada. Mais alguns minutos, mas não sem antes re-ajustar mais um horário para evitar imprevistos. Mais quinze minutos, quinze minutinhos. Bem sabe ele que não irá voltar ao país das asas inexistentes, das compras insanas e belas e solícitas odaliscas a granel. Não. Mas mesmo assim, é uma manhã mais cansada que outras, eis que o dia anterior foi muito andante, muito mesmo, com direito a uma ida e volta inútil de seu emprego às imediações da Central de Ladroagem do Trânsito, ou DETRAN. Ida e volta, duas vezes.

Andar faz bem à memória deste que lá em sua senzala esqueceu o fundamental para seu exame da malhção de velhos, ou simplesmente fisioterapia, mais uma vez a tal, mais uma vez a dita.

Enfim, pondo-se finalmente de pé, o Noiado olha através da janela para o plúmbeo horizonte, sinal certo de um dia chuvoso, dia em que as alergias infames se manifestam em sua maior força. Adiante; não é nada útil ficar ali a olhar para aquela paisagem acinzentada. O tempo passa e a manhã urge. Ou ruge, em anagrama mais adequado ao sentimento desta plena terça-feira nada gorda, nada magra. Adiante, adiante.

Bom dia, faz-se necessário um abraço naquela que o gerou, naquela que por tantos e tantos anos tolera este peso inútil de tanta potencialidade e tanta imbecilidade, constituição esta que quase anula a existência daquele ser. Faz bem à alma, ele presume. E de certa forma é bem verdade. Um abraço por vezes pode salvar vidas, conforme algumas vezes por ele já visto. Se não, ao menos pode acrescentar uma nota mais soante a esta sinfonia dissonante que é viver. E assim o foi, ao menos em seu interior, em sua mente. Seja lá onde for.

Sair e enfrentar o estranhamento da primeira manhã fria deste ano que parece que começou ontem mas que de fato tem como nascimento três meses atrás. Como o tempo passa, como os clichês imperam, como eles imperarão por toda uma vida, toda uma existência. Faz-se necessária nesta caminhada a té o transporte, a ferramenta fundamental para a sobrevivência do Noiado, aquela que para ele tanto sentido faz e para outrem não passa de esquisitices sonoras.

Música. Começemos com Dramarama e sua ode à vida inútil e este mundo bizarro que nos circula, palavras exageradas mas que que soam tão verdadeiras para este Noiado em questão. O vento é frio na praça, e mais além os friorentos mendigos que ali residem já há muito despertaram e já estão a postos em suas colheitas matinais por entre os detritos por outros ali deixados. Passa o tempo e não passam ônibus, e ele se põe a questionar se a famigerada greve ainda existe. Felizmente, após longos minutos de espera no vento frio, lá vem a caixa gigante de quatro rodas. Um brinde ao duo The Black Keys, por lhe fornecer música deveras animada para um pouco sacudir os frígidos ossos do Noiado. "Just Couldn't Tie me Down", de fato.

Mais adiante, ele observa com grave pesar as infelizes mães que retiram daquele ônibus seus filhos com problemas físicos sérios e que são tratados naquela clínica de reabilitação existente ali perto. É de se cortar o coração se você prestar atenção em demasia, e faz com que o Noiado tenha nefastos pensamentos sobre a criação, o Criador, e seu às vezes quase evidente sarcasmo perante à vida. Melhor não focar neste aspecto, não nesta manhã cansada.

Passam os carros, passam o tempo, passam as horas e a temperatura no display que ali existe para todos inquirirem a silente pergunta sobre os minutos, os segundos e as horas. Tempo. Mais adiante. Distraidamente, o Noiado olha para fora de sua janela, vê tudo mas nada vê, pois nada lhe parece real ou relevante.

E eis que naquele momento, uma de suas sinfonias roqueiras preferidas lhe atinge os ouvidos em cheio. Naquela manhã em especial, todo o sentido fazem aquelas palavras musicadas. Faz-se necessário escutar a dobradinha, eis que são de fato duas músicas de um mesmo disco que se emendam. Abençoados sejam os egocêntricos e complicados irmãos Robinson e sua banda de negros corvos.

"Hate and greed, swollen and sweet
Let's start this misery, if that's where you wanna be."

A Ballad In Urgency, de fato. Naquela manhã parece ser uma coisa urgente, escutar algo do naipe daquelas duas músicas, que tão reais, tão viscerais, parecem ser aos ouvidos do Noiado. Mas o grande momento, o momento que ele sabe que naquela específica manhã irá lhe causar aquela sensação única de arrepios que se irradiam da base da nuca por toda sua espinha, vem com o término da primeira música e o início da segunda. A emenda de piano, baixo e guitarra.

Que lhe acerta com todas as forças e quase o faz desmaiar. Feche os olhos, caro Noiado. Pois neste exato instante, tudo mais perde sua realidade nauseabunda. Tudo deixou de existir naquele momento. Apesar do ônibus estar estranhamente lotado para a hora, todos os passageiros, o trocador, o motorista e mesmo o ônibus deixaram de existir.

Naquele momento, naquele raro momento, tudo que existe é o Noiado e sua música predileta para aquele instante. Música esta, que lhe acompanha naqueles metros restantes até a saída do trepidante meio de transporte.

Música esta que lhe traz um pouco de vida para aquela confusa cabeça. Música esta que lhe tem especial significância, eis que naquele momento, de uma forma estranha e para todos desconhecida, aquela sonoridade lhe salvou a vida.

Afinal, aquelas pequenas coisinhas, aquelas notas para tantos tão triviais ou mesmo irritantes, são as cosas que salvam a vida deste Noiado. São estas coisas que têm real valor para este ser tão pobre de monetários mas tão rico de complexidades e platitudes.

E adiante ele segue, pois o dia há muito já avança e da vida real ele só pode fugir ou utilizando artificiais artifícios ou escapando para aquele reduto agora distante, mas que tem tanto valor para o Noiado no Sótão.

Este ser que tanto escreve e tanto pensa, mas nada resolve. Este paradoxo ambulante, tão pleno de chatices e ferrenhas críticas a si mesmo, mas que aparentemente é bom companheiro, segundo a opinião alheia de alguns, que tanto lutam para fazer com que ele entenda isto, aparentemente.

Adiante. Há muito a ser feito ainda. Que as pequenas coisas lhes forneçam ânimo para aqui no meio de nós ele continuar, apesar dos pesares e de sua cabeça repleta destas coisas.

Adiante.

"No time left now for shame
Horizon behind me, no more pain
Windswept stars blink and smile
Another song, another mile
You read the line every time
Ask me about crime in my mind
Ask me why another read song
Funny but I bet you never left home

And on a good day, I know it's not every day
We can part the sea
And on a bad day, I know it's not every day
Glory beyond our reach."

---------The Black Crowes, Wiser Time.