"Aqui, sua tia mandou estes livros de presente para você."
O ano era 1990, se não me engano. Recebi em mãos dois livretos. O primeiro que examinei, tinha a capa preta com uma magnífica ilustração exibindo um quarto de criança, com um garotinho apontando uma arma de brinquedo contra dois olhos vermelhos que ameaçadoramente se encontrava debaixo da cama, enquanto um tigre com cara de assustado segurava um pequeno tênis de criança como se fosse isca para que o monstro babando debaixo da cama dali saísse e fosse alvejado pelo intrépido infante. Chamava-se "Algo babando embaixo da cama". O outro livro, de capa predominantemente branca exibia outra ilustração tão maravilhosa como a do outro livro e chamava-se simplesmente "Calvin e Haroldo".
Eu tinha 13 anos na época. Não era nenhuma ocasião especial, do tipo aniversário ou coisa assim. Evidentemente, de bom grado recebi tais inesperados presentes, pois logo de cara já gostei das capas dos livretos. O desenho era realmente impressionante. Eu, desde minha tenra infância já havia sido "amaldiçoado" com a carga genética de minha mãe, e já gostava muito de passar horas por dia rabiscando e fazendo histórias, e curtia bastante este tipo de humor, em tiras. Era muito fã de Garfield, e posso afirmar que foi de minhas primeiras influências nesta área.
Mas com Calvin e Haroldo foi diferente. Eu fiquei completamente embasbacado com os dois livretos. Os tempos eram diferentes, não havia internet, e eu ainda era praticamente uma criança em vários aspectos, inclusive de brincar com carrinhos e coisas do gênero. E sempre tive imaginação fértil, gostando de inventar mesmo personagens fixos para meus devaneios infantis. E volto a dizer, eu fiquei maravilhado com os desenhos de Bill Watterson. Era um mundo bem diferente dos desenhos mais simples de Garfield. Muito diferente. E o humor, as histórias de um garotinho de sete anos com uma imaginação mais fértil que o solo da mata atlântica, quando esta ainda existia em sua plenitude. Eu gargalhava alto de certas tiras. As caras do Calvin eram as mais engraçadas possíveis.
Desde então, considero estes personagens como paradigmas deste tipo de humor desenhado. E até hoje eu considero todos os elementos do universo criado por Watterson como absurdamente fantásticos, tanto em termos de desenho quanto em termos de humor. Os livretos impressos pela (acho que) extinta editora Cedibra, estão em meu poder até hoje, bastante amarelados e com orelhas nas pontas, tantas foram as vezes que li e reli. Fiquei desapontado quando soube, em 1995 que Bill subitamente deixou de as desenhar, por motivos que até hoje não entendi ao certo. Sei que ele nunca terceirizou a produção de seu trabalho, ao contrário de Jim Davis(Garfield) e mesmo o nosso tupiniquim Maurício de Sousa; tampouco permitia a exploração comercial de seus personagens além da publicação dos livros. Não produziu bonecos, adesivos e quejandos. Talvez isto tudo tenha gerado uma espécie de estafa. É muita responsabilidade e muito trabalho para um cara só.
Muito tempo se passou desde então, 20 anos (a gente só envelhece mesmo). Minha vida deu várias voltas, fiz várias coisas, tive vários desejos. Mas um deles sempre me acompanhou. Eu sempre quis ter todos os livros desta dupla. Mas eram muitos, e minha grana sempre foi algo que não me permitia muito me permitir certos luxos, como este. Lá para 2006, se não me engano, um amigo meu, o famoso Damasceno, o Eduardo, adquiriu algo que me fez ter ímpetos de invadir seu apartamento na calada da noite e de sua estante sequestrar...The complete Calvin And Hobbes, uma caixa contendo três imensos volumes com todas as tiras da dupla.
Na quinta feira passada, eu e meus companheiros de "escrotório" fomos ao xópis Diamongol, que aqui perto fica, para lá almoçarmos. Conforme já disse antes, aquele templo do consumismo neo-burguês-zeolandês-capitalista-classe-média belorizontino para mim só tem três serventias: eventuais almoços, quando o escasso orçamento permite, consumo de cafézes mui saborosos e visitas à livraria que lá existe, que muito decaiu desde sua reforma que a transformou em Saraiva Megastore, nome muito imponente, mas que poucas vantagens significou para mim e meu infalível companheiro de consumismo literário, a saber, Hugo o Devogado Gigante.
Terminado o almoço, decidimos ir em tal livraria, que deixamos de frequentar por muito tempo, devido à reforma que poucas vantagens para nós significou. Como vingança do destino, ou simplesmente ironia do universo, Hugo avistou duas coleções embaladas em caixas que o tentarma bastante a ficar imensamente mais pobre para atender a seus desejos. Eu ri para ele e falei, "É, já vi que o senhor irá ter que gastar." Eu tinha visto algo mais modesto, uma antologia poética de Carlos, o Drummond de Andrade que me tentou, e estava em promoção. Mas o buraco orçamentário em minha conta era tão grande que não me atrevi a comprar. Mais tarde, quem sabe?
Quando íamos saindo da lija, Hugo viu outra caixa na vitrine que chamou sua atenção, e fomos em sua direção para examiná-la. Era uma coleção de três volumes de história da segunda guerra mundial, assunto que sempre o fascinou.
Foi aí que a coisa aconteceu. A ironia.
Enquanto meu companheiro babava por cima da caixa e já fazia cálculos para ver como e quando seria possível adquirir tal coisa, eu olhei inocentemente para meu lado esquerdo.
The Complete Calvin And Hobbes.
O mundo parou naquele instante. Meus olhos brilharam, e eu voltei vinte anos atrás no tempo. Na hora eu soube que TERIA que adquirir tal coisa, agora diante de mim, tão perto mas tão longe devido ao seu preço, salgado mas justo. A coleção é absurdamente bem feita e bem trabalhada, com a caixa e os três volumes que contêm tudo que eu queria desde 1990.
Pois bem. Ontem, após seis meses de espera, o sindicato do sei-lá-o-quê que os funcionários desta empresa que trabalho são afiliados, resolveu liberar o icomensurável aumento anual de 5%, que estava travado em processo administrativo qualquer desde dezembro de 2009, e de repente me vi com uma quantia que me permitiria fazer uma extravagância. Manobra arriscada, pois eu sabia que ficaria absolutamente falido após tal empreitada.
Mas eu sabia o que iria acontecer. Saí do almoço, me separei de Hugo, que precisava tornar ao escritório para fazer algo, e ouvi a vozinha fina de um moleque de sete anos me chamando. "Venha, compre."
Fui.
Comprei.
E fiquei tão feliz. Eu era o garotinho de sete anos. Que desde os treze esperou por tal momento. Quase fui esmagado pelo peso de tal caixa, assim que a removi da prateleira. A moça do balcão não conseguiu erguer tal peso para me devolver, após ter passado o cartão na máquina e ter me aliviado de um peso similar em minha conta bancária. Fui cambaleando de volta para a sede da Funchal, entortado pelo peso de tal caixa. Tive que gastar mais dinheiro para chegar até a casa de meu sobrinho torto, aquele que dou aulas de como não desenhar e como jogar conversa fiada e filosofia barata fora, pois sabia ser impossível transportar tal peso (10,2 Kg) em um coletivo, ainda mais naquele horário.
Meu aluno ficou louco, e disse que irá hoje mesmo adquirir sua caixa também. Bom ver que o pequeno menino de minha altura e metade de minha idade está sendo bem orientado, não? Ainda tive o privilégio de depois conseguir uma carona com a mãe dele até minha casa, onde fiquei um bom tempo apenas contemplando a caixa, sem ainda de fato ler tudo. Sei que ali talvez exista a explanação acurada dos motivos que levaram Watterson a deixar de produzir tal obra-prima, e sei que ali se encontram inumeráveis motivos de boas gargalhadas.
Na calada da madrugada, quando tive súbita insônia que tanto pesa minhas pápebras nesta manhã, mandei às favas as preliminares e saboreei muitas tiras, tendo que segurar meu volume do riso quando me deparava com aquilo que já sabia que iria encontrar ali.
E estou tão feliz. Minha vida ficou um pouquinho mais completa.
O ano era 1990, se não me engano. Recebi em mãos dois livretos. O primeiro que examinei, tinha a capa preta com uma magnífica ilustração exibindo um quarto de criança, com um garotinho apontando uma arma de brinquedo contra dois olhos vermelhos que ameaçadoramente se encontrava debaixo da cama, enquanto um tigre com cara de assustado segurava um pequeno tênis de criança como se fosse isca para que o monstro babando debaixo da cama dali saísse e fosse alvejado pelo intrépido infante. Chamava-se "Algo babando embaixo da cama". O outro livro, de capa predominantemente branca exibia outra ilustração tão maravilhosa como a do outro livro e chamava-se simplesmente "Calvin e Haroldo".
Eu tinha 13 anos na época. Não era nenhuma ocasião especial, do tipo aniversário ou coisa assim. Evidentemente, de bom grado recebi tais inesperados presentes, pois logo de cara já gostei das capas dos livretos. O desenho era realmente impressionante. Eu, desde minha tenra infância já havia sido "amaldiçoado" com a carga genética de minha mãe, e já gostava muito de passar horas por dia rabiscando e fazendo histórias, e curtia bastante este tipo de humor, em tiras. Era muito fã de Garfield, e posso afirmar que foi de minhas primeiras influências nesta área.
Mas com Calvin e Haroldo foi diferente. Eu fiquei completamente embasbacado com os dois livretos. Os tempos eram diferentes, não havia internet, e eu ainda era praticamente uma criança em vários aspectos, inclusive de brincar com carrinhos e coisas do gênero. E sempre tive imaginação fértil, gostando de inventar mesmo personagens fixos para meus devaneios infantis. E volto a dizer, eu fiquei maravilhado com os desenhos de Bill Watterson. Era um mundo bem diferente dos desenhos mais simples de Garfield. Muito diferente. E o humor, as histórias de um garotinho de sete anos com uma imaginação mais fértil que o solo da mata atlântica, quando esta ainda existia em sua plenitude. Eu gargalhava alto de certas tiras. As caras do Calvin eram as mais engraçadas possíveis.
Desde então, considero estes personagens como paradigmas deste tipo de humor desenhado. E até hoje eu considero todos os elementos do universo criado por Watterson como absurdamente fantásticos, tanto em termos de desenho quanto em termos de humor. Os livretos impressos pela (acho que) extinta editora Cedibra, estão em meu poder até hoje, bastante amarelados e com orelhas nas pontas, tantas foram as vezes que li e reli. Fiquei desapontado quando soube, em 1995 que Bill subitamente deixou de as desenhar, por motivos que até hoje não entendi ao certo. Sei que ele nunca terceirizou a produção de seu trabalho, ao contrário de Jim Davis(Garfield) e mesmo o nosso tupiniquim Maurício de Sousa; tampouco permitia a exploração comercial de seus personagens além da publicação dos livros. Não produziu bonecos, adesivos e quejandos. Talvez isto tudo tenha gerado uma espécie de estafa. É muita responsabilidade e muito trabalho para um cara só.
Muito tempo se passou desde então, 20 anos (a gente só envelhece mesmo). Minha vida deu várias voltas, fiz várias coisas, tive vários desejos. Mas um deles sempre me acompanhou. Eu sempre quis ter todos os livros desta dupla. Mas eram muitos, e minha grana sempre foi algo que não me permitia muito me permitir certos luxos, como este. Lá para 2006, se não me engano, um amigo meu, o famoso Damasceno, o Eduardo, adquiriu algo que me fez ter ímpetos de invadir seu apartamento na calada da noite e de sua estante sequestrar...The complete Calvin And Hobbes, uma caixa contendo três imensos volumes com todas as tiras da dupla.
Na quinta feira passada, eu e meus companheiros de "escrotório" fomos ao xópis Diamongol, que aqui perto fica, para lá almoçarmos. Conforme já disse antes, aquele templo do consumismo neo-burguês-zeolandês-capitalista-classe-média belorizontino para mim só tem três serventias: eventuais almoços, quando o escasso orçamento permite, consumo de cafézes mui saborosos e visitas à livraria que lá existe, que muito decaiu desde sua reforma que a transformou em Saraiva Megastore, nome muito imponente, mas que poucas vantagens significou para mim e meu infalível companheiro de consumismo literário, a saber, Hugo o Devogado Gigante.
Terminado o almoço, decidimos ir em tal livraria, que deixamos de frequentar por muito tempo, devido à reforma que poucas vantagens para nós significou. Como vingança do destino, ou simplesmente ironia do universo, Hugo avistou duas coleções embaladas em caixas que o tentarma bastante a ficar imensamente mais pobre para atender a seus desejos. Eu ri para ele e falei, "É, já vi que o senhor irá ter que gastar." Eu tinha visto algo mais modesto, uma antologia poética de Carlos, o Drummond de Andrade que me tentou, e estava em promoção. Mas o buraco orçamentário em minha conta era tão grande que não me atrevi a comprar. Mais tarde, quem sabe?
Quando íamos saindo da lija, Hugo viu outra caixa na vitrine que chamou sua atenção, e fomos em sua direção para examiná-la. Era uma coleção de três volumes de história da segunda guerra mundial, assunto que sempre o fascinou.
Foi aí que a coisa aconteceu. A ironia.
Enquanto meu companheiro babava por cima da caixa e já fazia cálculos para ver como e quando seria possível adquirir tal coisa, eu olhei inocentemente para meu lado esquerdo.
The Complete Calvin And Hobbes.
O mundo parou naquele instante. Meus olhos brilharam, e eu voltei vinte anos atrás no tempo. Na hora eu soube que TERIA que adquirir tal coisa, agora diante de mim, tão perto mas tão longe devido ao seu preço, salgado mas justo. A coleção é absurdamente bem feita e bem trabalhada, com a caixa e os três volumes que contêm tudo que eu queria desde 1990.
Pois bem. Ontem, após seis meses de espera, o sindicato do sei-lá-o-quê que os funcionários desta empresa que trabalho são afiliados, resolveu liberar o icomensurável aumento anual de 5%, que estava travado em processo administrativo qualquer desde dezembro de 2009, e de repente me vi com uma quantia que me permitiria fazer uma extravagância. Manobra arriscada, pois eu sabia que ficaria absolutamente falido após tal empreitada.
Mas eu sabia o que iria acontecer. Saí do almoço, me separei de Hugo, que precisava tornar ao escritório para fazer algo, e ouvi a vozinha fina de um moleque de sete anos me chamando. "Venha, compre."
Fui.
Comprei.
E fiquei tão feliz. Eu era o garotinho de sete anos. Que desde os treze esperou por tal momento. Quase fui esmagado pelo peso de tal caixa, assim que a removi da prateleira. A moça do balcão não conseguiu erguer tal peso para me devolver, após ter passado o cartão na máquina e ter me aliviado de um peso similar em minha conta bancária. Fui cambaleando de volta para a sede da Funchal, entortado pelo peso de tal caixa. Tive que gastar mais dinheiro para chegar até a casa de meu sobrinho torto, aquele que dou aulas de como não desenhar e como jogar conversa fiada e filosofia barata fora, pois sabia ser impossível transportar tal peso (10,2 Kg) em um coletivo, ainda mais naquele horário.
Meu aluno ficou louco, e disse que irá hoje mesmo adquirir sua caixa também. Bom ver que o pequeno menino de minha altura e metade de minha idade está sendo bem orientado, não? Ainda tive o privilégio de depois conseguir uma carona com a mãe dele até minha casa, onde fiquei um bom tempo apenas contemplando a caixa, sem ainda de fato ler tudo. Sei que ali talvez exista a explanação acurada dos motivos que levaram Watterson a deixar de produzir tal obra-prima, e sei que ali se encontram inumeráveis motivos de boas gargalhadas.
Na calada da madrugada, quando tive súbita insônia que tanto pesa minhas pápebras nesta manhã, mandei às favas as preliminares e saboreei muitas tiras, tendo que segurar meu volume do riso quando me deparava com aquilo que já sabia que iria encontrar ali.
E estou tão feliz. Minha vida ficou um pouquinho mais completa.