quarta-feira, 2 de junho de 2010

Reencontro.

Mais uma noite. Mais uma discussão.

Uma pá de discussões para ser sincero. Havia estado ele num bar, em companhia de amigos até tarde, e agora voltava aturdido, estonteado para casa. Não pelo efeito inebriante devido à ingestão de alcóois ou outras substâncias inebriantes, não. Cambaleava devido à surra mental que haviam lhe inflingido. Sentia-se como uma turba de torcedores amalucados em dia de clássico tivessem passado por cima de seu atônito corpo.

Na verdade, não haviam lhe agredido. Não. Ele sabia disto. Ele havia embarcfado na onda errada de se deixar agredir, não pelas opiniões divergentes de seus amigos, mas....pela sensação renovada de que ele era um ET naquele mundo. Que nunca, jamais, encnotraria nenhum alento em parte alguma daquele globo, ou antes glóbulo flutuante.

Não havia sido a primeira vez e sabia que não seria a última. Entrou em casa sentindo-se mal, com o estômago a revirar, sem que nem havia comido nem bebido nada naquela noite. Não havia ninguém na casa, e isto aumentou ainda mais sua sensação de solidão absoluta....naquele mundo, naquela dimensão, naquele universo. Tudo estava errado, mas ele sabia da verdade.

Ele estava todo errado. Tudo que acreditava, tudo que sonhava, tudo que queria. Nada fazia sentido algum naquele mundo. Ele estava errado. Era ele o estranho. Eram dele as opiniões de outro mundo, que sempre soavam risíveis a todas as outras pessoas.

Quase todas as outras pessoas. Algumas compartilhavam de suas opiniões; não todas, bem entendido. Mas mesmo assim...esta pequena porção de gente contra o restante da população do mundo...Não era preciso ser um gênio da estatística para chegar à mesma conclusão que que ele chegara naquela madrugada.

Eles estavam errados. Ele e seus parcos amigos que pensavam como ele.

Quem ganharia nesta briga, quase sete bilhões de pessoas contra dez, quinze malucos?

Riu disto amargamente, e se dirigiu ao seu reduto final, seu refúgio de todo aquele nonsense que lá fora imperava, o sótão. Abriu a porta e olhou ao redor. Nada, evidentemente. Ali só se ouvia o quieto rumor do vento e das traças comendo seus papéis, aranhas marrons circulando silenciosamente em busca de eventuais presas.

Sentou-se na beirada da cama. Sabia que naquela noite, não haveria descanso para aquela mente inquieta. Sabia que não haveria conforto naquele colchão. Os travesseiros se transformariam em pedra. Já havia tido noites como aquela.

Tudo passa, tudo passa.

Não estava passando. Desde remotos anos do final da década de setenta. Nunca, nunca havia passado. Levantou-se e foi até seu esconderijo de coisas proscritas pelo ministério da saúde. Selou o cigarro de palha e o acendeu, aspirando toda aquela toxicidade. Sentiu o corpo relaxar um pouco, mas uma de suas vozes interioranas, sempre chata afirmava-lhe, "cinco minutos a menos de vida para cada cigarro!" Foda-se, afirmou ele em voz alta. Queria que fossem cinco anos a menos.

Covarde, replicou outra voz do interior de sua cabeça. Ele soltou mais uma baforada contra o vazio do sótão e tratou de silenciar todas as vozes que começaram a se levantar em sua cabeça. Mas esta não se calava. Covarde. Se queres fazer algo significativo, saia deste mundo batendo a porta. Dê logo um tiro em sua cabeça, e cale para sempre todas as vozes.

Tragou mais um tanto de fumo. Já havia argumentado demais naquela noite, não queria saber de mais nada. E sabia que não iria fazer nada do naipe sugerido por sua voz suicida. Ele era teimoso. Duro.

"se você morresse...
mas você não morre.
Você é duro, José!"

E sabia que precisavam dele vivo naquela casa. Não iria abandonar as pessoas que mais gostava apenas por ser um problemático, um alienígena. Não era assim tão egoísta.

Queria que tudo se calasse naquela noite, mas sabia que a insônia reinaria absoluta. Foi até outro secreto recesso de suas coisas e apanhou o suco de dormir previamente preparapo dias antes. Ilegalmente preparado. Nem pestanejou. Bebeu uns três goles: sabia que aquilo lhe bastaria. Fez suas abluções, apagou a luz e se dirigiu para a cama.

Ficou ali, na escuridão, pensando no que ouvira na noite, no que ouvira durante a vida. Errado, errado, estás errado, seu mundo é de faz de conta, ha ha ha. Suspirou pesadamente e rolou, de cá para lá, por um bom tempo. O sono artificial e/ou natural não lhe chegava. Estava cansado, estava moído, só queria calar tudo aquilo, fugir de tudo aquilo da maneira que lhe era permitida por lei.

Pôs-se a olhar o teto. O silêncio era absoluto naquela noite.

De repente, ouviu um som, inicialmente tímido e quase inaudível, mas depois foi ficando mais firme, mais...estranho. Era como uma espécie de sussurro, ao menos com isto se parecia. Levantou um pouco a cabeça, olhou ao redor. Nada. A escuridão ali não era absoluta, pois as janelas de vidro da frente do sótão não tinham cortinas, e a luz da rua por ali entrava livremente. Mas aquele som...ele existia, vinha de alguma parte. Pôs-se sentado na cama e aguçou seus ouvidos.

Nada. Silêncio, novamente. Suspirou e abaixou seu corpo novamente, mas parou no meio do movimento. Ouviu o som novament, vindo...do travesseiro. Sussurros.

Como um raio, pôs-se de pé. O interruptor de luz estava do outro lado do quarto, mas sentia agora medo de transpor aquele espaço. Sentiu algo como um vento passando por sua nuca, um arrepio gelado se irradiando por todo seu corpo logo em seguida. Havia ali perto o banheiro, uma luz. Para lá se dirigiu, tremendo.

Assim que se pôs na moldura da porta, sentiu algo estranho e instintivamente olhou para o espelho. Viu sua escura silhueta ali refletida, evidentemente. Pôs a mão sob o interruptor, mas assim que fez menção muscular de o acionar, viu um vulto que se moveu rapidamente por trás de seu reflexo no espelho.

Agora aterrorizado, ele se voultou e olhou para ovazio do cômodo. Nada, evidentemente. Ele deveria estar sofrendo de stress pela surra mental da noite. Mas sentiu novo calafrio se irradiar de sua nuca quando ouviu novamente um sussurro em seu ouvido.

Olhou ao redor, para o chão, para as paredes, procurando ver algo. Nada, nada havia ali dentro, nada. Nada havia ali dentro. Mas...

Levantou a vista para as janelas de vidro. Lá fora.

Havia uma...coruja? Ali.

E sorria para ele.

Dizem que em momentos de extremo pânico, o corpo se retesa todo, preparando-se para lutar ou fugir, mas ele não fez nada além de travar todo, quase por completo, quase não conseguindo pensar em nada, nada além daquela visão. Pois sabia que não era uma coruja, que não sorriem. O que era, não saberia dizer, não poderia dizer. Seu corpo estava paralisado, e apesar de toda a tensão reinante em todos seus músculos, ele não consegui sequer respirar. Sentia que algo se aproximava...que algo fazia sons indefinidos em seus ouvidos, vozes, muitas vozes, nunca dantes escutadas.

Sufocado, tentava entender tudo aquilo, mas abia que não poderia. Seus pêlos, agora todos eriçados eram capazes de sentir a leve brisa que se formava ao seu redor, com que causadas pelo ar expelido por milhares de invisíveis bocas que sussurravam. Seu coração parecia que iria explodir. Sua pressão devia estar parecida com a de uma locomotiva a vapor.

Mas não conseguia se mover, não podia se mover. Os únicos músculos que ainda lhe obedeciam eram os oculares, que se voltaram irracionalmente em direção à janela. A aparição estava agora do lado de dentro. Havia triplicado de tamanho, e havia mudado de forma. E sorria para ele. Chegava cada vez mais perto.

O quê era aquilo?

Cada vez mais perto.

O quê era aquilo???

Mais perto.

O QUÊ ERA AQUILO????

Perto.

Sorriso, sempre presente. Batimentos cardíacos, quase chegando aos trezentos. A visão começou a escurecer, assim que viu a mão se levantar e estender os dedos em direção à sua cara. A forma, agora ele pôde reconhecer. Mas não queria aceitar, nada que nele havia de racional aceitava aquilo. Nada. Sorriso. A visão cada vez mais obscurecida, ainda pôde registrar os dedos que passaram suavemente por seu rosto, cerrando-lhe as pálpebras. Sentiu seu coração bater cada vez de maneira menos e menos desesperada, e sentiu sua tensão se aliviando, de maneira muito incongruente para tudo aquilo.

Sentiu que sua consciência ficadva pesada, sentiu um pesado sono se apoderando de seus sentidos. Mas...o quê....como....quem...

Não sentiu mais nada.


Voltou à consciência sem sobressaltos, por mais estranho que possa parecer. Lembrava-se nitidamente de tudo, mas não entendia nada. Sentia-se calmo, sereno, mas sua inquietação mental fez com que se levantasse da cama onde estava confortavelmente deitado.

Era dia. Esfregou os olhos e olhou ao redor, com um ruga cada vez mais pronunciada em sua testa. Estava no sótão, mas nao era o sótão, com suas nuas tábuas de chão sem acabamento, seu telhado desprovido de forro, suas paredes toscas e cinzentas.

Estava tudo novo, arrumado, limpo. As paredes pintadas. O chão impecavelmente limpo e "sintekado". Um forro de gesso com detalhes rebuscados em seus cantos escondia as telhas e a caixa d'água barulhenta. A porta que dava acesso ao interior do outro sótão estava proviida de uma escada bem-feita, bem acabada.

Era outro lugar, só poderia ser. Mas seus inquietos olhos continuavam a perscrutar aqueles arredores....e viram o antigo telefone de seu avô, numa estante finamente acabada. Seus livros, todos organizados em prateleiras muito diferentes daquelas coisas remendadas que ali haviam. Sua caixa recém comprada da coleção de Calvin e Haroldo, ali estava cuidadosamente depositada.

A imensa mesa verda que era de seu avô ali estava, com seu computador, seu scanner, sua tablet. Havia uma bateria no centro do quarto, e várias guitarras penduradas na parede oposta, onde também havia um fino guarda roupa, fechado. Olhou para o lado esquerdo de sua cama. Na alva parede, pendia o quadro emoldurado que seu amigo Fernando havia lhe presenteado semanas atrás, ao lado de emoldurados desenhos que...pareciam ser alguns de meus melhores desenhos, que nunca havia terminado, nunca haviam passado da fase de esboços.

Estava em casa. Mas não estava. Mesmo a cama que estava sentado era gigante, absurdamente confortável.

De repente sentiu delicadas mãos a lhe acariciar o ombro. Com um sobressalto, se voltou. Ela lhe olhava com aquele sorriso que nunca havia deixado de existir na forma estranha forma que dele se aproximara na noite anterior. Olhos verdes, cabelo moreno. "Calma, ela disse. Vai passar. É normal se sentir perdido."

Perdido? Eu estava desorientado. Quem era ela? O que era tudo aquilo? Ela segurou minhas mãos, que tremiam, muito. Mas assim que senti o toque aveludado daquela pele, senti uma imensa calma se apoderando de mim. Ela sorria, nada dizia. Pus-me a estudar aquela bela mulher. E percebi que havia algo de imensamente familiar naquela desconhecida.

Ela não me era desconhecida. Exibia em seu braço esquerdo uma tatuagem que eu havia visto antes. Um belíssimo dragão. E na hora me lembrei daquele dia no shopping. Do desencontro. De minha busca desesperada pela dona daquele lampejo de beleza que me havia passado pelo canto do olho. Era ela.

"Bem-vindo ao seu mundo, meu querido." Ela me disse, me abraçando apertadamente. Eu senti uma imensa onda de emoções varrendo todo meu ser. Queria rir, chorar, correr, gritar. Tudo ao mesmo tempo agora.

Estava em casa. E sabia que ali estariam todos que comigo se importavam e que de alguma forma haviam me ajudado por toda uma vida de busca. Busca por meu lugar, meu mundo, fora daquele imenso turbilhão de absurdos que quase me levaram à beirada do abismo.

Não entendia direito como havia chegado ali, mas não importava. Sabia que estava em paz agora. Não precisava de mais nada.

Estava em casa.