quinta-feira, 17 de junho de 2010

Ônibuses.

1997. Em plena luz da madrugada, alguém tentava se manter acordado dentro do ônibus, um velho livro de bioquímica em seu colo. A prova, a prova. Era preciso estudar, era preciso passar. A edição, carcomida pelo tempo excessivo encerrada na biblioteca central da universidade, exibia sinais de amarelecimento e bolores, muitos bolores. Era preciso beliscar-se, puxar os pêlos do braço para manter-se acordado. A pesca de tubarões e outros peixes ali parecia estar legalizada, de qualquer forma, eis que alguém sempre pendia a cabeça involuntariamente em direção aos piruvatos, ácidos graxos e outras coisas que só o mapa diabólico encerrava. Era preciso manter-se acordado.

Entretanto, houve um momento em que alguém deixou que a cabeça se prostrasse quase morta, por um tempo maior que o devido. De repente, tudo havia sido transportado para 2000, ano este em que as más sensações começadas por volta do ano passado, retrasado, que seja, tomassem conta do inquieto e insatisfeito espírito daquele alguém. Era meio-dia, ou quase isto, e ele transitava dentro de azul mercedes, apanhada nas imediações de seu sub-emprego, adquirido para tentar manter-se vivo diante das circunstâncias. Ia em pé, e a cabeça bambeava de um lado para outro; o lauto almoço de dois pães com "mortandela" lhe pesava no estômago e na mente, e sentia o irresistível apelo de Morfeu, mesmo ali, de pé. Segurava firmemente as hastes metálicas que lhe serviam de apoio, mas ainda assim, tinha muito sono. De repente, um solavanco, mesclado com uma pescada fenomenal, rendeu-lhe sonora batida de suas fuças no cano em sua frente.

Junto com o barulho do metal colidindo com aquela cabeça dura, hove ummomento de clareza, um sonoro momento de brancura em todas as vistas, em todos lugares. De repente, era 2004. Contava as moedas guardadas num improvisado porta-moedas de Kinder Ovo, eis que após ter abandonado aquele emprego de merda, ia muito hesitante de encontro a seu destino, por assim dizer. Iria novamente prestar aquele concurso, malfadado empreendimento que lhe poderia gerar um brilhante futuro nas artes e partes. As mãos já tremiam de antemão. Ele sabia que borracha não deveria ali ser usada, tampouco muitos recurso os quais estava acostumado a ter em suas mãos, tantos recursos, tintas, papéis, canetas. Tanta coisa. Mas ainda era muito cedo, e não havia pregado os olhos naquela noite, eis que a ansiedade, tão forte naquele alguém, tinha lhe roubado todo e qualquer possibildade de dormida naquela noite, que precedia tão importante momento. Sentiu os olhos pesarem e se fecharem por um momento maior que o devido.

E de repente, era 2006, e ele ia atonitamente calado dentro do coletivo que lhe levava dali para longe dali, longe de todo aquele repente, todo aquele sonho que havia se transmutado em horrendo e infindável pesadelo que havia se tornado aquele retorno àquela faculdade, àquele nonsense que havia se tornado toda aquela esperança. O chão não existia; era como se estivesse sendo transportado num eterno vácuo. Era como estava se sentindo por dentro: um absoluto vazio, um oco eterno. Naquela manhã, havia escutado todo o blah blah blah de certa Andrea LAMA, e sentiu que não podia mais tolerar aquilo, não sem voltar para aquele covil de "artishtash" flácidos armado de duas escopetas calibre doze, muita munição e três quilos de C-4. Nada mais fazia sentido. Era o vácuo eterno dentro de si. Fechou os olhos procurando alguma luz, mas só encontrou as trevas.

E quando abriu novamente os olhos, era 2008. Ia impaciente daquele emprego recém-readquirido para seu esconderijo secreto, onde a vida real nada real lhe aguardava. Era noite de encontro com toda aquela gente que só existia em um mundo eletrônico, em uma realidade virtual, que estava cada vez mais e mais se tornando mais importante que a realidade real. Uma vida secundária que estava se tornando cada vez mais importante que a real, WoW, WoW. Nada mais lhe importava a não ser roxos armamentos, muitas insíginias, o reconhecimento de gringos que nunca haveria de ver nem conhecer naquela realidade real mas cada vez mais e mais distante de sua paralela existência com o mundo que havia lá fora, e que cada vez mais fazia menos e menos sentido. Impaciente, tentou repassar mentalmente a estratégia do combate virtual da noite, fechando os olhos e tentando se lembrar de todos os detalhes.

E em 2009, ia novamente se sentindo cada vez mais em ais vazio por dentro, agora sem a paralela realidade, sem qualquer propósito para aquel inútil existência naquele esférico manicômio que girava a sabia-se lá quantos mil quilômetros por hora espaço afora. Nada lhe fazia sentido, nada lhe trazia sentido, nada era real, agora que o surreal deixara de existir. Nicotina, nicotina, sentia o apelo daquela coisa que tanto lhe tentava. Alguém nunca poderia ficar sem alguma forma de auto-agressão, alguma forma de escapismo, de punição por mais uma vez ter chegado à conclusão que para nada prestava, para nada existia além de por meio de linhas toscamente escritas tentar existir deveras. Nada. Nada. Nunca seria nada, como Pessoa, o Fernando havia lhe afirmado em nota secreta, em dedicatória a alguém escrita, sem nem ao menos saber disso, sem nem se dar conta que 81 anos depois aquele poema encontraria o destinatário ideal. Desesperadamente, fechou novamente os olhos.

E em 2010, algumas décadas após aquele fatídico dia de setembro de 1977, alguém ainda se pergunta por que diabos existe gente como ele no mundo, que só servem para dar despesa, desdém, a todos os alheios passageiros desta imensa viagem de ônibus que nunca terminou, que começou sabe-se lá quando e que sempre continua na mesma. Tabaria, tabacaria. Ainda em alguém existe morada para tais aflições, tal inutilidade de ser nada e ser tudo. Falhara até em pequenas homenagens que a muito desagradaram, em impaciências para com alguém que tanto lhe considera, sem mesmo saber, por quê, por quê. Pra quê? Onde é o ponto final desta linha, onde é o pingo nos is que reside toda aquela renúncia de ser nada, nunca poder ser nada, nunca poder querer ser nada?

Onde?