terça-feira, 27 de julho de 2010

Dorme. Acorda.

-Tá estragado.
-Ah sim, eu reparei. Vi que havia alguém parado à beira da estrada.
-Pois é. Passam muitos por aqui todos os dias.
-Todos os dias. E às noites?
-Às noites eu durmo. Ou quase. Nem sempre.
-Sei. Como foi que isto estragou?
-Não sei muito bem ao certo. Má funcionamento; culparam os pais.
-Os pais? Mas o que eles têm a ver com este motor?
-Não sei. Talvez tenham sido eles que o planejaram.
-Não creio nisso. Acho que talvez tenha sido mais um golpe de sorte.
-Má sorte, sim. Talvez.
-Tudo depende do referencial. Da forma como é visto.
-Mas agora mesmo, eu não vejo.
-Sim, eis que estás cego por seus ditos olhos.
-Sim.
-Não, na verdade, quisestes assim. Quisestes ser cego, não enxergar o problema no motor a tempo.
-Será? Eu que venho tentando localizar a falha há tanto tempo? Tanto tempo estou cá parado neste acostamento.
-O acostamento se tornou um enconstamento, pelo que vejo.
-De fato, assim lhe parece, assim deve parecer a mim, que sou vós, que somos tu.
-Tantas facetas, tantas verdades, tantas realidades inseridas em um só corpo.
-De fato. Como fazer, para não enlouquecer?
-Tarde demais, já nascestes louco. E sabes bem disto.
-Ah, sim. Imaginei mesmo ter acordado para isto, mas era tarde da noite já.
-A noite vem de todos os lados, não somente quando é muito tarde.
-Sim, mas a esta hora ela vem mais depressa.
-Não vejo. Ainda consigo enxergar o motor, ainda consigo ver o problema.
-Talvez seja hora de acionar o resgate?
-Talvez seja hora de pagar o resgate, por assim dizer.
-Talvez seja hora de parar com a discussão. O que aconteceu afinal de contas?
-Nada sei, somente acho que teve a ver com os valores e a soberba.
-Com os valores?
-Sim. O que vale muito, não vale nada. E o que vale nada, vale tudo. Toda uma vida.
-Mas como sei disto? Como sabia disto? Como sempre soube disto. Eu sempre soube disto, não é verdade?
-Sim, de fato.
-E por quê para nada me serviu?
-Por que para ti, nada serve, nem mesmo o que lhe faria mais sentido. Queres sempre o que não tens, almejas sempre o que não és, sempre está aqui, sem nem ao menos de fato estar.
-É possível estar vivo assim?
-Sim, para muito desespero de quem tens que vos tolerar.
-Bem sei.
-Sei que sabes. Agora, deves saber o que fazer, não?
-Não. Senão não estaria aqui.
-Tens certeza disto?
-Não sei.
-Nem eu.
-Então, o que fazer?
-Esperemos. Esperemos.
-Mas e o Tempo?
-Passará, como sempre passou. É o que ele faz. Não te apoquentes.
-Gostaria de pensar como pensas.
-E eu, vice-versa.
-É raro conversarmos, sem cairmos na porrada.
-É que o Tempo dorme. O tempo, assim como a mente, está mais quieto, no momento.
-Gostaria que sempre fosse assim.
-Eu não. Dá no mesmo. Estaríamos parados.
-Existe algum conserto para aquilo?
-Acho que sim. Mas há que se estar acordado para agir.
-Em mais que um sentido, não é mesmo?
-É o que dizes. Seu fraco.
-Seu teimoso.
-Já devemos estar acordados. Já começaram as brigas.
-Claro, você sempre tem que dizer o que fazer, não é mesmo?
-Lógico. Eu tenho a lógica. Tu tens a falta de sentido, mané.
-Sentido! Que sentido existe na racionalidade? De que adianta seres diferente do que és?
-Não és porra nenhuma!
-Graças a você!
-Escroto!
-Filho da puta! Me deixa trabalhar!
-Eu não! Para quê? Para quê gasta meu tempo, meu valioso tempo, fazendo estas merdas, que não servem pra nada?
-Para mim servem! E já que fazes parte de mim e eu de você, você deveria aceitar isso!
-Não aceito, assim como não eceitas os números, as retas, as matrizes! A Contabilidade! O dinheiro!
-Dinheiro de cu é rola!
-Só se for no seu!
-No nosso, filho da puta!
-É!
-Vai logo, anda com isso. Olha lá, tudo torto.
-Foda-se!
-Para logo com essa merda, vai fazer algo de produtivo!
-Vá tomar no rabo!
-Vamos logo, então. Ao menos, mais agilidade nessa porra aí
-Cale-se, ô seu biltre dos infernos!
-Vamos logo! Anda, tempo é dinheiro! Dinheiro que não ganhas com isto, com esta merda!
-Vou mais é tomar um café.
-Certo. Isto concordamos. Anda logo e acende um canudo da morte também.
-Se é pra ver livre de você o mais rapidamente possível, acedo. Acendo.
-Porra nenhuma; se quisesse mesmo, já teria resolvido isto direito também. Covarde.
-Toma a joça do café, fedaputa.
-Agora, volte lá para seu dito trabalho, seu chorão.
-Vou é calar sua boca duma outra forma. Toma!
-Agora...eu só fico...com sono.
-Então...cale a boca....me deixa quieto aqui...
-Anda logo...seu...
-Isso, dorme aí, filho da puta....me deixa aqui....aqui não tem problemaaaa....

(Dormem ambos os hemisférios.)