terça-feira, 13 de julho de 2010

Madame.

Terça-feira, 13 de julho de 2010.

Hoje fui humilhada, em plena luz do dia. Minha mãe bem dizia para eu nunca frequentar estes locais onde as classes mais baixas da sociedade se abastecem de seus horríveis víveres, aquelas cervejas baratas, pão seco e duro e todas aquelas coisas baratas e infinitamente inferiores às que costumo comprar no Caríssimus daqui do bairro. Gente pobre é meio que animalesca demais para meu gosto, bem entendido.

Mas aconteceu de que meu supermercado preferido estava fechado devido à algum fato inda por mim não definido, e o incompetente de meu chofer não sabia de nenhum outro estabelecimento digno de receber uma pessoa de minha refinada estirpe em seu interior, então fui forçada a ir ter àquele antro de pessoas sub-humanas em sua existência embrutecida por sua ignorância, sua má índole e seu baixo poder aquisitivo. Coisas que somente uma desgraçada como eu tenho que enfrentar em meus jantares. Dorinha Daspu nunca teve que enfrentar tamanho constrangimento, aposto.

Enfim, a hora de meu soberbo jantar se aproximava e não tive escolha: tive de ir naquele Supermercado do Povão, mesmo sabendo de antemão o que iria encontrar ali, toda aquela gente maltrapilha e barulhenta, sem um pingo de educação. Minha cunhada, assistente social nas horas vagas, me diz que tenho que conviver mais com este tipo de gente, para me sentir mais humilde e mesmo para valorizar mais minha vida distinta nesta sociedade. Após esta visita a tal estabelecimento, creio que me afastarei o máximo possível deste tipo de gente.

Eu precisava de comprar endívias, couve de bruxelas e lagostas, coisas que sempre encontro no Caríssimus. Errei feio em crer que este povinho teria se educado a degustar alimentos mais dignos dos seres humanos mais requintados, eis que não somente não consegui encontrar nenhum dos itens por mim ansiados, mas fui destratada pelos ignorantes funcionários de cada sessão. Nem mesmo camarão fresco havia na seção da infame peixaria de tal pocilga. Quando comentei que o funcionário que me atendia estava sendo muito grosseiro para com minha pessoa, recebi escandalizada um xingamento digno de um pedreiro, de um jagunço nordestino, algo assim.

Lembrei-me de meus conselhos de minha psiquiatra e resolvi não dar asas à minha raiva, e ignorei solenemente tal brutamontes, dirigindo-me triunfante para a seção de hortaliças. Ali, por algum milagre, consegui encontrar algumas endívias, que estavam marcadas erroneamente como almeirão. Já a couve de bruxelas foi impossível de ser encontrada. Como queria sair dali o mais breve possível, me dirigi apressadamente ao caixa, onde muito me irritei: a atendente que ali trabalhava conversava muito com todas as pessoas à minha frente. Eu fiquei pigarreando deveras, para ver se tais criaturas se tocavam e abandonavam aquela conversa frívola de novelas e filhos cobertos de catarro, mas mesmo assim uns bons quinze minutos se passaram até que minha vez chegasse.

A caixa, que já havia me olhado com olhos irritados momentos antes, creio que por não aceitar minhas sugestões para o incremento de sua agilidade na estúpida função que ali desempenhava, foi extremamente grosseira comigo, e chegou mesmo a se irritar quando questionei o preço de tal endívia, que estava muito amassada pelo contato com todas aquelas mãos rudes daquele povão que ali frequenta, e teve a audácia de me chamar jocosamente de madame.

Naquela hora, me exaltei e chamei o gerente daquele infecto estabelecimento. Expus-lhe todas minhas agruras ali passadas; as injúrias por mim desferidas pela caixa e pelo açougueiro, e reclamei da falta de agilidade dos atendentes e do risível estoque de víveres decentes ali existente. O gerente, este uma exceção à regra do local, vendo minha posição social mais elevada e mais digna de ser tratada diferenciadamente, ficou a meu favor, muito se desculpou e prometeu agir energicamente em relação aos seu dissidentes funcionários.

Saí dali muito contrariada, mas triunfante. Sei que fiz valer meus direitos de cidadã preferencial, com posses e educação refinada, contra àquela selva de animais que se encontrava naquele supermercado infame.

Meu jantar foi um sucesso, e como costuma recomendar minha analista, cá estou escrevendo sobre as experiências do dia, ainda que tenham sido deveras enervantes. Mas sei que devo manter minha cabeça erguida e ignorar os ignorantes, os pobres de riquezas e de espírito que abundam neste país que vivo, tão diferente da europa. Um dia ainda convencerei meu marido a mudar para lá.

Os malditos cães de guarda estão latindo muito esta noite. Creio que os gatos de minha vizinha estejam novamente passeando nos muros que me protegem desta realidade sórdida deste povinho que me circunda. Penso em acordar meu motorista para os enxotar, mas não irei fazê-lo: minha terapeuta diz-me que devo ter mais iniciativa e tentar resolver as coisas por minha própria iniciativa. Irei ver o que é e depois me recolherei.