Errante. A palvra surge em minha cabeça, sem nem ao menos que eu mande. Errante. Que diabos, pensei eu. Fiquei ali na cama, desperto subitamente por toda a dimensão do mundo, toda a complexidade de suas construções, de suas relações, de suas convoluções.
Errante. Levantei-me, chequei o mecanismo contador do tempo: duas e trinta e seis, não exatamente a hora de ver o nascer do sol, o começo de um novo dia. Errante, errante. A coisa continuava a ecoar em minha cabeça, sem nem ao menos me dar chance para pensar, para tentar pensar, para tentar arquitetar alguma saída, algum escape. Errante.
Pela janela, muito pouco se via, se é que ver seu próprio reflexo na vidraça é ver alguma coisa além de uma visão distorcida de si mesmo. Fundos olhos, fundas vistas. Errante. Mas que diabos, pensei eu, pensando que penando, talvez rezando, talvez lamentando-me, do modo que a coisa se desenvolveu. O que havia feito eu, para ali estar, ali chegar. Estou muito distante de mim, deste próximo de mim. Errante.
Sentado na cama, o sono havia partido. Partido de mim, dali que ali estava, a não ali estar, sem nem ao menos pestanejar - ali eu não estava, ali ninguém estava. Errante. Marcante tal palavra, errante. Diga sete vezes seguidas, dez vezes nove, dez vezes nada, noves fora, doze dentro. Por horas, estive ali, sem nem ao menos ali estar. Errante.
Adiante, mundo afora a pensar, sem nem ao menos sair daquele recinto, daquele lugar. Aliterações e enumerações, números e datas, vozes e locais. Faces e mais faces. Tudo foge de seu lugar, tudo muda de lugar. Errante. Taxas e mais taxas, impostos que nos são impostos, sem nem ao menos nos perguntar, pra lá e pra cá, errante.
Do segundo que partiu do maquinismo, nada surgiu além da nítida sensação de que havia partido de mim outro momento, outros quinhentos momentos, outras novidades, vidas sem alento, vidas sem tormento. Ficções do interlúdio, como diria o genial ser, além-mar, além-túmulo. Errante.
Noite afora, horas a fio, momentos e mais momentos. De quê, de nada. Obrigado, por tudo. De nada e nada. Errante, errante. Acordado, sem nem saber por quê; desperto de todo o ocaso da inexistência de morrer sem de fato o fazer, desperto estava eu, a contar os insones segundos de uma noite velada pelo inexplicável. Errante.
Despertai em mim todo e qualquer poeta medíocre em mim adormecido, em esta noite desprovida de sentido, desprovida de sono, desprovida de tempo. Segundos, que em horas afoitas são milésimos, haviam se convertido em decênios, em quinquênios, algo que o valha. Errante. Errante. A palavra, a palavra dali não saía, não se movia, não se mexia.
Enfim, em dado momento alguns momentos depois, alguns segundos ou milênios se passaram, horas e horas errantes a se entrecruzarem por todo o acontecimento. Dormi, novamente dormi, sem nem ao menos conseguir distinguir o sonho da realidade, a essência da substância, a dor do calor, a mor de ser, sem o ser. Inexistência de existir, morrer sem morrer, dormir e dormir.
Errante.