Ontem, passei o dia sem identidade. E posso afirmar ser uma coisa meio triste, meio inútil de se pensar: eu, que sempre zelei por manter minha identidade, mantive-a a salvo por tantos e tantos anos, bem ontem, na data de ontem, justamente ontem, eu fiquei sem identidade.
Tristes tempos estes, sim, de fato. Ficar sem sua identidade significa por muitas vezes casar-se às multidões, em uma breve porém atemporal luta por manter sua integridade, sua identidade, seu unicicismo único e referencial para toda uma vida. Por vezes, me desesperei, tentando obter alguma resposta, algum sinal, alguma ajuda.
Juntar-me à cavalada, aos gnus de plantão que tanto pisoteiam a cidade em uníssono abaixar de cabeças e rumninar de pastos era-me inconcebível. Ainda mais eu, que por tantos e tantos anos afirmei ter uma identidade própria, uma afirmação pessoal, uma voz, uma versão única e exclusiva. Pois, após tantos e tantos anos de luta e desespero, sem amparo, sem alento sem atropelo, fui tomado pelo pânico e pela razão irracional de estar sem razão.
E ali estava, sem ser eu, sem ser ninguém. Sem identidade, quem você pensa que é. Para águas além-mar, seria apenas um John Doe qualquer, um meliante, uma sombra do que havia sido enquanto classificado, registrado, catalogado. Sim, o registro, o registro, a tudo sabe, a tudo indica. Mais vale um pânico na multidão que estar sozinho? Não bem o sei.
Não sabendo de nada, não sendo nada, poderia ser tudo. Poderia ser de novo, novo! Perder-se em desconhecido por mais que seja desesperador, poderia ter suas vantagens? Perder suas desavenças, seus preconceitos, sua vida? Sua identidade? O que seria sua identidade. O que seria ser você, quando você de si não tem apreço, mesmo quase nenhum?
Entretanto, bem todos o sabem - haveremos sempre de temer o que não bem dominamos, o que não conhecemos. Por que, não bem o sei, não bem o sabemos; não haveremos de saber, pois dali pra frente, nada sabemos, nada conhecemos. Quem seria você, se não fosse você? Quem seria eu se não fosse eu? Alguém saberia dizer?
Ali, ela estava, ali ela jazia, ela se encontrava, por todo o dia de ingognicidade. Veracidade sob papel, foto sob documento, artigo sobre palavra, concreto sob abstrato. Quem é você, além do que estaria impresso ali? Quem seria você sem seus números ali registrados, impressos, confirmados, regulamentados, isentos, proventos, noves fora, zeros dentro?
Não mais esqueça sua carteira, não mais fique sem identidade, não mais seja além do que algum dia já foi e nada será. Não mais seja um Zé Ninguém anônimo, des-registrado, des-classificado. Ali estava eu, minha face, meus números. Minha identidade, por fim.
Tome nota: por um dia pude ser tudo mas não fui nada além do que não era registrado por todos, por todos regulamentados, por todos esperado.
Por um dia, fiquei sem identidade.
Por um dia, fiquei sem ser o que sou.
Por um dia, nada - e mais nada - aconteceu.
Como sempre, como dantes, como sei que é.
Não mais esqueça sua identidade. Você sempre será o que é, o que se espera que seja, o que está por lei regulamentado registrado confederado riscado esperado taxado tachado.
O que esperar além do que não é, não se pode dizer, não se pode afirmar. Medo, sempre teremos medo, de ser quem não somos, quem não éramos.
Identidade - um mero papel, um mero registro...ou toda uma vida? Quem sabe? Quem me dirá que sabe? Quem não sabe, talvez saiba, de fato. Mas eu não sei.
Ali estou, registrado, classificado.
E assim é.