terça-feira, 3 de março de 2009

A primavera.

Acordar. Esfregar os olhos. Abrir a janela. Cinza, cinza, cinza. Apesar de amar aquela cidade, aquela época do ano era demasiado opressiva para pessoas como ele. O inverno ali era depressivo...Olhou o relógio e constatou que estava um pouco atrasado.

Não que realmente se importasse com seu emprego. Não. Mas todo cuidado era pouco.

Enquanto vestia-se, sua cabeça teimava em vagar pelo passado. Tudo aquilo parecia ter sido um absurdo, um pesadelo. Sua famíla, por possuir um estabelecimento comercial simples - uma tipografia - havia sido tachada de burguesa pelo partido e sofrido diversas sanções absurdas. Ele, que sempre almejara uma carreira como pesquisador, havia sido obrigado a trabalhar como auxiliar de mecânico desde 1962.

Havia sempre rumores de olhos à espreita por todos os lados. Sua mãe, que falecera no ano anterior, sempre recomendava cautela. As histórias sobre como o governo tratava os transgressores eram assustadoras, e ele não poderia deixá-la sozinha. Resignou-se em abandonar suas crenças, seus sonhos e esperanças em uma carreira universitária.

Nunca poderia ir muito adiante com tantos olhos à espreita e tandos ouvidos zombeteiros. O partido tinha informantes vis por todos os lados. Um de seus companhiros de faculdade, Ludvik, devido a uma brincadeira, havia sido banido de todas suas atividades e havia desaparecido. A última notícia que teve dele era algo assustador para alguém como eles...ele estava trabalhando como operário em alguma mina de carvão regida pelo vil exército.

Malditos russos, ele pensou.

Nenhum deles havia aprendido a ler mentes, então ele deixava ela livre de rédeas nessas horas.

Filhos de vacas mal paridas. Putos safados, malditos, malditos.

Após alguns momentos de raiva interna, olhou novamente para o relógio. Céus, tinha que correr para não perder o bonde. Engoliu alguns pedaços de pão seco e saiu apressadamente pelas ruas de Praga. Não poderia deixar que tivessem motivos para censurá-lo. Seu superior já havia dado uma dura nele outro dia enquanto matava mentalmente todos aqueles cretinos condizentes com aqueles russos de merda que ali haviam. Puxa-sacos do caralho.

Sempre sonhava com alguma vã esperança de algum dia aquilo tudo acabar. Haviam rumores naquele ano de 1968. Ele acompanhava tudo de perto, o mais discretamente possível, claro. Diziam que havia um tal de Dubcek que tinha boas idéias.

Quem sabe ainda haveria esperança?

De qualquer maneira, pelo menos ainda havia boa cerveja disponível mesmo aos pobres-diabos como ele...

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Er, este inusitado tema de hoje apareceu em minha cabeça não sei bem a que horas, e como bom semi-tcheco que sou(50% ao menos - minha branquelagem não me deixa mentir!) resolvi escrever algo a respeito daquela terrinha que um dia ainda hei de conhecer. Sim, admito que não tenho conhecimentos efusivos sobre o país de meus avós, além da leitura de vários livros de Milan Kundera(a referência a Ludvik veio de seu personagem de seu livro A Brincadeira) e conversas com uma amiga de minha mãe, exilada daquele país na época mais sinistra do comunismo de Stalin.

Mas, com somente estes relatos, sei que meus avós fizeram bem de não voltar para lá após o término da II Guerra. O comunismo ali foi terrível, era uma espécie de ditadura militar constante. Você era sempre espionado, escrutinizavam todos seus movimentos...E de fato, se o partido havia por mal lhe tachar de "burguês", você estava fudido. Acabavam com sua vida. A história da tipografia é adaptada da vida desta amiga de minha mãe e meus avós, Anniča(sei lá se é assim mesmo que se escreve isto, mal ae, mas meu tcheco se resume a 2 frases). A família dela realmente possuía uma tipografia. Resultado: após ter sido cenominada burguesa, ela não pode estudar adequadamente e teve que ser "voluntária do campo", eufemismo para fazer trabalhos forçados nas colheitas. Anos mais tarde, ela fugiu para a nossa terra tupiniquim. Não é de se estranhar.

Estou em processo de obter minha cidadania par poder algum dia visitar ali. Quem sabe alguma coisa melhor há de me esperar naquela terra...não sei bem a certo, enfim. Veremos. Ao menos ali, sei que não olham para desenhadores e entusiastas da música com olhos jocosos. E sei que a cerveja de lá é realmente boa, ao contrário dese mijo engarrafado que vendem aqui...

Mas enfim, são apenas suposições. E eu tenho que trabalhar. Notas fiscais. Tomates. Tomates. Pra mim plantam ali apenas pepinos e abacaxis. Ah, enfim.

Até amanhã...