Frio, frio.
Neve por todos os lados.
Ele caminhou até a janela. Evidentemente, não havia muito o que ser visto. Quase não era possível distinguir as formas dos pinheiros que circundavam a casa. A cabine. Frio, muito frio. Esfregou as mãos numa tentativa de restabelecer a circulação sanguínea ali. Por mais que tentasse, não conseguia afastar a dormência das pontas dos dedos. E tal dormência piorava ainda mais seu já abalado ânimo em escrever.
Olhou ao redor. Nada muito animador. Andou até a cozinha, pensando em fazer algo para comer, embora não tivesse o mínimo de fome. Apenas queria adiar mais um pouco a visão. Abriu a geladeira, latas, latas. Sopa. Atum. Sardinha. Ficou olhando e olhando, procurando alguma coisa que não estava ali. Apareceu-lhe na mente a pontinha de um pensamento. Afastou-o, fechou-o a ferros em algum outro canto de sua cabeça.
Fechou a geladeira com estrondo e impaciência. Doze passos. O quarto. Olhou ao redor, evitando passar a vista no canto esquerdo, perto da janela.
Nada ali também.
Dezesseis passos. A sala. Sabia que deveria economizar madeira, mas se agachou diante da lareira e fez uma pequena fogueira ali. Uma, duas, três, quatro achas e alguns gravetos, alguma serragem. Fogo. Procurou em seu bolso a cigarreira. Sabia que não o deveria fazê-lo, mas sentia vontade de se acabar um pouco mais.
Desde o derradeiro momento, havia se empenhado em ser estúpido. Acendeu o prego de caixão na chama que se formava e aspirou a fumaça. Sentou-se na poltrona solitária e olhou para o teto, resistindo bravamente à tentação de contar as tábuas do forro. Sim, ele já as havia contado algum outro dia, mas não se lembrava do resultado. Levantou-se, dez passos, bar, garrafa de gin. Tônica. Copo. Glug, glug, repita.
Lá fora o vento uivava. O que estava fazendo ali? O que estava tentando provar?
Levou a garrafa para a poltrona, mesmo sabendo que detestava o gosto daquela bebida pura. Não precisaria de gelo, já estava frio o suficiente.
Glug, glug.
Repita.
Jogou o toco do cigarro no fogo. Começou a sentir outra espécie de dormência pelo corpo. Ah, o álcool. Quem teria sido o primeiro ser humano a resolver beber? Quem teria sido o primeiro cara que percebeu o tanto que aquilo poderia ser tão divertido por vezes...e tão terrível depois? Enterrou a cabeça nas mãos. Todos haviam dito a ele, não faça isso. Não fique sozinho. Não numa hora dessas, ao menos. Não vá para as montanhas. Vá para o Caribe. Havaí.
Mas não. Canadá. Em algum lugar esquecido. Acesso impossível por carro. Alugue um snowmobile.
Glug, glug.
Repita.
Ele havia dito a seu editor, preciso de idéias novas. Preciso de mais tempo. Não estou em condições de pensar direito por aqui. Porque. Tenho vontade de matar alguém.
Não, não havia dito aquilo, mas o pensamento lhe ocorria sempre que pensava...nela, nele, no maravilhoso triângulo nada equilátero. Eu e ela, ela e ele.
Ela e ele.
Glug, glug.
Repita.
A onda já era inegável. O álcool corria descontrolado por todo seu corpo. Hi hi hi. Achava tudo engraçado, muito engraçado. Levantou-se, dez passos...mais um, dois. Tome mais um golinho, mais dois. Ha ha ha. Que engraçado ver que tudo gira. Tudo gira! Não preciso de ninguém, disse pra si mesmo com toda a convicção. Ninguém, ouviu sua vaca puta. Seu filho da puta. Seus miseráveis malditos. Nin-guémmmmm.
Doze passos, treze passos, quatorze, dezesseis. Não! Cadê o quinze? O quinze, como havia se esquecido logo dele, porra. Números eram tão legais. Menos quando impressos em um extrato bancário. Menos quando impressos em um relatório de divórcio. Ah, mas que diabo. Volte aqui, Bombay-Sapphire. Meu amigo, meu irmão!
Glug, glug, glug, glug, glug, glug.
Acho melhor não repetir.
Não agora.
Cambaleando pela cabine, foi impulsionado até o monstro. Até o mecanismo.
Tec, tec tec. Agora sim, estava pronto para escrever sua obra-prima. O livro que salvaria sua vida, salvaria sua carreira. O manuscrito que iria lhe render milhões. O livro que esfregaria na cara daquela vaca. Daquela puta, glug glug. Tec tec tec tec.
Plin!
Olhou para a folha de papel.
"Aquella vaca. Aqwuelas putya. vaik se fudre."
Ótimo. Já tenho o primeiro paragráfo, de minha obra prima. De minha salvação.
Glug.
Arremessou a garrafa na parede, obtendo mais um punhado de cacos ao redor do canto da máquina de escrever. Bateu a cabeça no teclado, incrementando ainda mais o texto ali existente.
Plin!
Não se importava com o tão ridículo estava. Chorou e chorou, se engasgando cada vez mais com aquilo tudo. Por um descuido, escorregou para o chão e caiu em cima da poça de álcool e cacos de vidro.
Ai!
Os cortes amenizaram um pouco da bebedeira. Pra quê. Levantou-se e observou sua mão, acompanhando o sangue que dali escorria. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete passos. Porta. Banheiro. Álcool, desta vez iodado.
Aaaaaaaiiiiiiiiiii!!!!!!!
Olhou para o reflexo no espelho já trincado. Mais um soco o estilhaçou mais ainda.
Dez, doze, sei lá, passos. O quarto. Desabou sobre a cama, sentindo o quarto girar ao redor. Gira gira gira. Tudo gira.
Amanhã, disse ele. Amanhã será melhor. Amanhã, mentiu ele para ele. Amanhã.
Neve por todos os lados.
Ele caminhou até a janela. Evidentemente, não havia muito o que ser visto. Quase não era possível distinguir as formas dos pinheiros que circundavam a casa. A cabine. Frio, muito frio. Esfregou as mãos numa tentativa de restabelecer a circulação sanguínea ali. Por mais que tentasse, não conseguia afastar a dormência das pontas dos dedos. E tal dormência piorava ainda mais seu já abalado ânimo em escrever.
Olhou ao redor. Nada muito animador. Andou até a cozinha, pensando em fazer algo para comer, embora não tivesse o mínimo de fome. Apenas queria adiar mais um pouco a visão. Abriu a geladeira, latas, latas. Sopa. Atum. Sardinha. Ficou olhando e olhando, procurando alguma coisa que não estava ali. Apareceu-lhe na mente a pontinha de um pensamento. Afastou-o, fechou-o a ferros em algum outro canto de sua cabeça.
Fechou a geladeira com estrondo e impaciência. Doze passos. O quarto. Olhou ao redor, evitando passar a vista no canto esquerdo, perto da janela.
Nada ali também.
Dezesseis passos. A sala. Sabia que deveria economizar madeira, mas se agachou diante da lareira e fez uma pequena fogueira ali. Uma, duas, três, quatro achas e alguns gravetos, alguma serragem. Fogo. Procurou em seu bolso a cigarreira. Sabia que não o deveria fazê-lo, mas sentia vontade de se acabar um pouco mais.
Desde o derradeiro momento, havia se empenhado em ser estúpido. Acendeu o prego de caixão na chama que se formava e aspirou a fumaça. Sentou-se na poltrona solitária e olhou para o teto, resistindo bravamente à tentação de contar as tábuas do forro. Sim, ele já as havia contado algum outro dia, mas não se lembrava do resultado. Levantou-se, dez passos, bar, garrafa de gin. Tônica. Copo. Glug, glug, repita.
Lá fora o vento uivava. O que estava fazendo ali? O que estava tentando provar?
Levou a garrafa para a poltrona, mesmo sabendo que detestava o gosto daquela bebida pura. Não precisaria de gelo, já estava frio o suficiente.
Glug, glug.
Repita.
Jogou o toco do cigarro no fogo. Começou a sentir outra espécie de dormência pelo corpo. Ah, o álcool. Quem teria sido o primeiro ser humano a resolver beber? Quem teria sido o primeiro cara que percebeu o tanto que aquilo poderia ser tão divertido por vezes...e tão terrível depois? Enterrou a cabeça nas mãos. Todos haviam dito a ele, não faça isso. Não fique sozinho. Não numa hora dessas, ao menos. Não vá para as montanhas. Vá para o Caribe. Havaí.
Mas não. Canadá. Em algum lugar esquecido. Acesso impossível por carro. Alugue um snowmobile.
Glug, glug.
Repita.
Ele havia dito a seu editor, preciso de idéias novas. Preciso de mais tempo. Não estou em condições de pensar direito por aqui. Porque. Tenho vontade de matar alguém.
Não, não havia dito aquilo, mas o pensamento lhe ocorria sempre que pensava...nela, nele, no maravilhoso triângulo nada equilátero. Eu e ela, ela e ele.
Ela e ele.
Glug, glug.
Repita.
A onda já era inegável. O álcool corria descontrolado por todo seu corpo. Hi hi hi. Achava tudo engraçado, muito engraçado. Levantou-se, dez passos...mais um, dois. Tome mais um golinho, mais dois. Ha ha ha. Que engraçado ver que tudo gira. Tudo gira! Não preciso de ninguém, disse pra si mesmo com toda a convicção. Ninguém, ouviu sua vaca puta. Seu filho da puta. Seus miseráveis malditos. Nin-guémmmmm.
Doze passos, treze passos, quatorze, dezesseis. Não! Cadê o quinze? O quinze, como havia se esquecido logo dele, porra. Números eram tão legais. Menos quando impressos em um extrato bancário. Menos quando impressos em um relatório de divórcio. Ah, mas que diabo. Volte aqui, Bombay-Sapphire. Meu amigo, meu irmão!
Glug, glug, glug, glug, glug, glug.
Acho melhor não repetir.
Não agora.
Cambaleando pela cabine, foi impulsionado até o monstro. Até o mecanismo.
Tec, tec tec. Agora sim, estava pronto para escrever sua obra-prima. O livro que salvaria sua vida, salvaria sua carreira. O manuscrito que iria lhe render milhões. O livro que esfregaria na cara daquela vaca. Daquela puta, glug glug. Tec tec tec tec.
Plin!
Olhou para a folha de papel.
"Aquella vaca. Aqwuelas putya. vaik se fudre."
Ótimo. Já tenho o primeiro paragráfo, de minha obra prima. De minha salvação.
Glug.
Arremessou a garrafa na parede, obtendo mais um punhado de cacos ao redor do canto da máquina de escrever. Bateu a cabeça no teclado, incrementando ainda mais o texto ali existente.
Plin!
Não se importava com o tão ridículo estava. Chorou e chorou, se engasgando cada vez mais com aquilo tudo. Por um descuido, escorregou para o chão e caiu em cima da poça de álcool e cacos de vidro.
Ai!
Os cortes amenizaram um pouco da bebedeira. Pra quê. Levantou-se e observou sua mão, acompanhando o sangue que dali escorria. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete passos. Porta. Banheiro. Álcool, desta vez iodado.
Aaaaaaaiiiiiiiiiii!!!!!!!
Olhou para o reflexo no espelho já trincado. Mais um soco o estilhaçou mais ainda.
Dez, doze, sei lá, passos. O quarto. Desabou sobre a cama, sentindo o quarto girar ao redor. Gira gira gira. Tudo gira.
Amanhã, disse ele. Amanhã será melhor. Amanhã, mentiu ele para ele. Amanhã.