Mais uma noite insone neste cubículo.
O quarto que nos "oferecem" por aqui é uma coisa ridiculamente pequena. Quase opressivo, sufocante. Gostaria de saber se nos outros blocos continentais do mundo que ainda se degladiam entre si, os cientistas estão sendo tratados desta mesma maneira.
Me falavam que era perigoso saber demais certas coisas. Alguns de meus amigos de infância eram suficientemente inteligentes para serem meus colegas nas ciências, mas abandonaram todos os estudos quando as coisas começaram a ficar complicadas.
Eu sempre tive ambições nesta área. Ignorei todos os avisos...e, sinceramente, esperava que por agora, as coisas já estariam melhores. Quando me vi no meio de meu primeiro doutorado, já era tarde. Já estavam de olho em mim. E, por vaidade ou simplesmente por ambição científica mesmo, nunca sequer cogitei a possibilidade de parar tudo e abandonar o país, como meus pais fizeram...
Confesso que acho que, se tivesse de abandonar meu trabalho e ter de fazer algo mais manual, acho que morreria de tédio.
Especialmente depois destes últimos dois meses.
Por mais incongruente que possa ser, meu trabalho aqui está sendo minha única motivação para não acabar com tudo, não sair daqui batendo a porta, ingerindo algum composto letal do laboratório de análises.
Meu antecessor nesta unidade de pesquisa relutou muito, discutiu as repercussões de se fazer pesquisa com seres humanos, mas acabou sendo vencido pela força dos agentes daqui e seus métodos de nos obrigarem a fazer as coisas...mas creio que ele também acabou sendo seduzido pela pesquisa em si, no final de sua vida.
Meu "paciente" principal é uma mulher de 30 anos, que está em estado suspenso há dez anos. Creio que era uma das dissidentes que fez parte das manifestações que culminaram em mais de dois mil mortos e milhares de feridos. E aparentemente, os sobreviventes desta confusão se tornaram cobaias do governo.
Esta mulher está sendo o foco principal de um program de manipulação de identidades, onde conseguimos alterar toda a realidade percebida pelo cérebro do paciente em seus sonhos. As pesquisas do falecido doutor deram muitos resultados, todos fascinantes do ponto de vista científico...mas muito questionáveis em todos outros aspectos.
Para se ter uma idéia, conseguimos inserir nos sonhos dela uma realidade completamente diferente. Ela está sonhando que é um homem. Um voluntário de um programa de criogenia desenvolvido pela inteligência governamental, que acorda em um mundo pós-apocalíptico. Não sei de onde o tal doutor tirou tal idéia, mas pelo que podemos ver nos resultados preliminares, tal realidade se tornou absoluta no cérebro dela.
Creio que se a despertássemos, ela não mais acreditaria na realidade em si. A julgar pelas leituras dos padrões neurais dela, acho que ela nem mesmo iria crer que é de fato uma mulher, e não um homem.
Os resultados são siceramente...emplogantes para um cientista, mas não consigo nunca me esquecer do que é que de fato estamos fazendo com ela. Ela era uma pessoa, hoje é apenas o recipiente natural para a preservação do cérebro em que conduzimos tais estudos.
E então me lembro em que me transformei...em que me fizeram transformar. Enquanto estou no laboratório, analisando os dados e inspecionando a realidade paralela que inserimos dentro da cabeça da pobre coitada, eu me empolgo, e me deixo levar pelo calor da pesquisa, pela "aventura" do conhecimento, como dizia o falecido doutor.
Depois, quando me vejo sozinha e trancada neste quarto, me dou conta do que estou fazendo. Aquilo era uma pessoa. Era uma mulher como eu. Não sei mais nada de sua vida, apenas sei que agora ela crê ser uma pessoa completamente diferente. E a "mente" que ali inserimos era de outra pessoa, que já sucumbiu aos experimentos.
O que estamos fazendo aqui? O que eu estou fazendo?
Nas primeiras semanas, eu quis muito encerrar tudo. Quis me matar, sinceramente. Mas estava sempre sendo vigiada. O tempo foi passando, fui me resignando a apenas obedecer, dizendo a mim mesma que não faria mais nada além de obedecer, sem de fato contribuir com meu pensamento, minhas idéias para a melhoria da pesquisa.
Mas o tempo foi passando, e eu fui ficando ligada à pesquisa, mesmo por que se tornou meu único objetivo na vida...e meu único "conforto" aqui, por assim dizer. E me deixei corromper. Comecei a contribuir ativamente para o progresso das pesquisas. Foi graças a uma idéia minha que o dito "transplante" de personalidade foi possível de ser feito.
Nós só teríamos de matar o cérebro do doador, só isso.
Eu matei uma pessoa. Indiretamente, mas matei. E acabei com a vida de outra, inserindo ali uma realidade por nós manipulada, alterada para atender nossa pesquisa. E fiquei empolgada no decorrer das pesquisas, animada com os resultados. Como se estivesse lidando com meros ratinhos, e não pessoas.
Em que me transformei?
Tento esquecer tal coisa, mas simplesmente não consigo. Tento justificar de todas as maneiras, mas...eu sei que não existem justificativas.
Minha cabeça já alteja, e meus olhos se marejam. Tenho que parar. Tenho que dormir. Mas não consigo. Todo os dez anos de sono initerrupto daquela mulher se tornaram minhas noites de insônia.
Em que me transformei? O que estou fazendo?
Devo parar, não sei nem que horas são, mas creio que em breve virão me buscar para que eu continue...a torturar aquela pobre mulher, e aquilo que um dia já foi a mente de um homem.
O que estou fazendo?
O quarto que nos "oferecem" por aqui é uma coisa ridiculamente pequena. Quase opressivo, sufocante. Gostaria de saber se nos outros blocos continentais do mundo que ainda se degladiam entre si, os cientistas estão sendo tratados desta mesma maneira.
Me falavam que era perigoso saber demais certas coisas. Alguns de meus amigos de infância eram suficientemente inteligentes para serem meus colegas nas ciências, mas abandonaram todos os estudos quando as coisas começaram a ficar complicadas.
Eu sempre tive ambições nesta área. Ignorei todos os avisos...e, sinceramente, esperava que por agora, as coisas já estariam melhores. Quando me vi no meio de meu primeiro doutorado, já era tarde. Já estavam de olho em mim. E, por vaidade ou simplesmente por ambição científica mesmo, nunca sequer cogitei a possibilidade de parar tudo e abandonar o país, como meus pais fizeram...
Confesso que acho que, se tivesse de abandonar meu trabalho e ter de fazer algo mais manual, acho que morreria de tédio.
Especialmente depois destes últimos dois meses.
Por mais incongruente que possa ser, meu trabalho aqui está sendo minha única motivação para não acabar com tudo, não sair daqui batendo a porta, ingerindo algum composto letal do laboratório de análises.
Meu antecessor nesta unidade de pesquisa relutou muito, discutiu as repercussões de se fazer pesquisa com seres humanos, mas acabou sendo vencido pela força dos agentes daqui e seus métodos de nos obrigarem a fazer as coisas...mas creio que ele também acabou sendo seduzido pela pesquisa em si, no final de sua vida.
Meu "paciente" principal é uma mulher de 30 anos, que está em estado suspenso há dez anos. Creio que era uma das dissidentes que fez parte das manifestações que culminaram em mais de dois mil mortos e milhares de feridos. E aparentemente, os sobreviventes desta confusão se tornaram cobaias do governo.
Esta mulher está sendo o foco principal de um program de manipulação de identidades, onde conseguimos alterar toda a realidade percebida pelo cérebro do paciente em seus sonhos. As pesquisas do falecido doutor deram muitos resultados, todos fascinantes do ponto de vista científico...mas muito questionáveis em todos outros aspectos.
Para se ter uma idéia, conseguimos inserir nos sonhos dela uma realidade completamente diferente. Ela está sonhando que é um homem. Um voluntário de um programa de criogenia desenvolvido pela inteligência governamental, que acorda em um mundo pós-apocalíptico. Não sei de onde o tal doutor tirou tal idéia, mas pelo que podemos ver nos resultados preliminares, tal realidade se tornou absoluta no cérebro dela.
Creio que se a despertássemos, ela não mais acreditaria na realidade em si. A julgar pelas leituras dos padrões neurais dela, acho que ela nem mesmo iria crer que é de fato uma mulher, e não um homem.
Os resultados são siceramente...emplogantes para um cientista, mas não consigo nunca me esquecer do que é que de fato estamos fazendo com ela. Ela era uma pessoa, hoje é apenas o recipiente natural para a preservação do cérebro em que conduzimos tais estudos.
E então me lembro em que me transformei...em que me fizeram transformar. Enquanto estou no laboratório, analisando os dados e inspecionando a realidade paralela que inserimos dentro da cabeça da pobre coitada, eu me empolgo, e me deixo levar pelo calor da pesquisa, pela "aventura" do conhecimento, como dizia o falecido doutor.
Depois, quando me vejo sozinha e trancada neste quarto, me dou conta do que estou fazendo. Aquilo era uma pessoa. Era uma mulher como eu. Não sei mais nada de sua vida, apenas sei que agora ela crê ser uma pessoa completamente diferente. E a "mente" que ali inserimos era de outra pessoa, que já sucumbiu aos experimentos.
O que estamos fazendo aqui? O que eu estou fazendo?
Nas primeiras semanas, eu quis muito encerrar tudo. Quis me matar, sinceramente. Mas estava sempre sendo vigiada. O tempo foi passando, fui me resignando a apenas obedecer, dizendo a mim mesma que não faria mais nada além de obedecer, sem de fato contribuir com meu pensamento, minhas idéias para a melhoria da pesquisa.
Mas o tempo foi passando, e eu fui ficando ligada à pesquisa, mesmo por que se tornou meu único objetivo na vida...e meu único "conforto" aqui, por assim dizer. E me deixei corromper. Comecei a contribuir ativamente para o progresso das pesquisas. Foi graças a uma idéia minha que o dito "transplante" de personalidade foi possível de ser feito.
Nós só teríamos de matar o cérebro do doador, só isso.
Eu matei uma pessoa. Indiretamente, mas matei. E acabei com a vida de outra, inserindo ali uma realidade por nós manipulada, alterada para atender nossa pesquisa. E fiquei empolgada no decorrer das pesquisas, animada com os resultados. Como se estivesse lidando com meros ratinhos, e não pessoas.
Em que me transformei?
Tento esquecer tal coisa, mas simplesmente não consigo. Tento justificar de todas as maneiras, mas...eu sei que não existem justificativas.
Minha cabeça já alteja, e meus olhos se marejam. Tenho que parar. Tenho que dormir. Mas não consigo. Todo os dez anos de sono initerrupto daquela mulher se tornaram minhas noites de insônia.
Em que me transformei? O que estou fazendo?
Devo parar, não sei nem que horas são, mas creio que em breve virão me buscar para que eu continue...a torturar aquela pobre mulher, e aquilo que um dia já foi a mente de um homem.
O que estou fazendo?