Dias desde a última anotação: vários.
Minha cabeça lateja. Por onde começar?
Abandonei estes escritos por um bom tempo. Perdi grande parte do que já havia escrito, devido a meus devaneios destes últimos tempos.
Não me orgulho do que fiz, mas também não sinto nenhum remorso.
Estou ficando meio doido já, pelo visto. Bem, comecemos do princípio. Alguns dias depois de ter encontrado aquela esquecida guitarra, minha insônia voltou. Com força. Fiquei uns três dias sem nem ao menos me sentir cansado, mas mesmo assim, eu queria dormir de qualquer maneira. O sono é um excelente passatempo quando as horas são completamente livres e sua única obrigação é manter-se vivo.
Ao fim da terceira noite em que velei incessantemente noite afora, até o raiar do dia, eu saí cedo daqui de "casa" e me pus a andar a esmo pelas ruas. Quando o sol já estava alto e a fome começou a aparecer, me dei conta que não sabia onde estava. Havia andado tanto tempo apenas olhando para o chão, no piloto automático, que passei do ponto e estava numa área por mim ainda desconhecida. Nenhum ponto de referência.
Como tenho o senso de orientação digno de um cachalote em terra firme, acabei me perdendo mais e mais a medida que tentava encontrar algum modo de voltar ao meu canto. Depois de várias horas rodando e rodando, me vi diante de um monumento carcomido, uma espécie de praça central. Eu me lembrava daquela praça, do tempo em que as coisas ainda existiam propriamente ditas, e me espantei com o estado arruinado do monolito central, agora um monte de escombros esquecido.
Não sei ao certo o que aconteceu ali, mas afirmo que foi algo muito estranho. Enquanto contemplava o monumento, me aproximei um pouco para tentar ler o que estava escrito na placa de identificação, e...não sei.
Houve um momento em que tudo sumiu, mas...não foi bem um desmaio, não foi nada. Eu estava caminhando em direção ao monolito, e olhando para a placa, e de repente...eu não consegui mais enxergar nada.
Havia anoitecido.
Sim, estranho, muito estranho. Foi como se entre dois passos meus em direção ao monumento, passaram-se umas cinco ou seis horas. Assim, do nada. Estava absolutamente escuro.
E eu estava ainda perdido.
Felizmente, eu sempre carrego comigo uma tosca mochila com alguns petrechos, entre eles a tal lanterna de fricção que havia encontrado naquele laboratório. Depois de uns seis minutos torcendo aquela josta, consegui uma carga para no mínimo conseguir entrar num dos prédios extintos ao meu redor e me abrigar um pouco. Algumas noites, costuma haver tempestades de poeira por aqui, então resolvi não arriscar.
Dentro do tal prédio, improvisei um acampamento, consegui acender uma pequena fogueira, e lá fiquei, olhando para o fogo e tentando sentir algum sono, mas nada. Depois de um bom tempo, exasperei-me. Me levantei, fiz mais carga na lanterna e comecei a explorar o prédio.
Resolvi descer uns degraus e virar à esquerda num corredor estranho. Eu tinha uma estranha sensação de perpétuo dèja vu, como se já estivesse estado ali. Como se eu soubesse para onde ir. Entrei numa sala, aparentemente deserta, mas segui reto em direção à parede oposta e empurrei a porta aparentemente secreta que ali havia.
Como eu sabia que existia aquele compartimento escondido ali, não descobri até hoje, mas eu parecia estar meio que em transe. Supus que fosse culpa do período estendido de insônia.
Bem, dentro daquele quarto secreto...Havia uma imensa quantidade de garrafas. Vinhos. Vodkas. Whiskys. Tudo que se possa imaginar no univeros das bebidas destiladas. Várias garrafas vazias jaziam ao chão, mas haviam muitas, mas muitas garrafas fechadas, novinhas. Apesar de toda a poeira reinante.
Examinando o restante do quarto, descobri que ali não era apenas uma adega secreta, mas também uma tabacaria de primeira. Charutos. Fumo de rolo. Havia uma empoeirada mesa com tampo de vidro que encerrava um curioso cachimbo, aparentemente muito velho. Muito precioso.
Duas horas depois que havia encontrado aquilo tudo eu estava cantando feito um bobo alegre nos corredores daquele prédio. Resolvi descontar todos aqueles anos de abstinência, seguidos daqueles dias de absoluta solidão, me encharcado naquelas esquecidas relíquias. Enchi a cara até não mais poder, fumei uns três charutões, arranquei o cachimbo de sua perpétua redoma e o pus em funcionamento também. Eu tossia a não mais poder, e minha cabeça girava e girava, mas eu não me sentia mal. Estava muito bem.
Era muito bom se desligar. Ligar o foda-se. Afogar todas aquelas mágoas, toda aquela branca e imensa existência de nada sobre nada.
No dia seguinte, acordei de novo na tal praça, com um sobressalto. Me levantei cuidadosamente, já esperando a má onda da ressaca me atingir, mas...Eu estava me sentindo muito bem. Não estava com dores de cabeça, não estava entupido de catarro devido ao fumo...era como se nada houvesse acontecido. Mas eu estava trajando roupas agora estampadas por diversas manchas roxas, prova de que eu havia babado algum vinho.
Achei o prédio, entrei no saguão, achei minhas coisas lá esquecidas. Tudo em ordem. Juntei tudo, e resolvi tentar achar meu caminho de volta ao rio Porão. Mas quando ia saindo, lembrei-me da sala secreta. Será que eu deveria carregar algum daqueles líquidos esquecimentos, aquelas fumacentas distrações? Ou será que eu deveria deixar tudo ali, para não entrar na tentação de encher a cara todos os dias até morrer?
Meu lado mais fraco falou mais alto, e lá fui eu procurar a tal sala, em busca de algumas garrafas, alguns cigarros, alguns charutos. Foda-se, eu merecia: era o último ser humano por ali, quem iria me julgar? Eu mesmo? Meu determinismo de mandar tudo à merda estava em alta. Dane-se tudo.
Acontece que a tal sala não existia. Nem o corredor comprido o qual havia circulado na noite anterior. Rodei, rodei, procurei e procurei, só me detive quando percebi que as horas estavam passando, e eu estava quase morto de fome. Tinha que achar meu acampamento, e rápido. Saí esbaforido do prédio e circulei um bom tempo até encontrar um de meus marcadores numa esquina; virando à direita, encontrei a trilha que buscava. Estava salvo.
Alguns passos adiante, encontrei o rio. Segui adiante, e lá estava minha "casa". Meu cantinho na sombra, tudo certo. Fui imediatamente procurar uma de minhas conservas de carnes toscamente defumadas; estava de fato faminto. Me fartei daquela carne sem sabor, mas que havia se tornando estranhamente suculenta devido ao meu estado de crescente fome.
Fui apanhar minha garrafa pequena de água em minha mochila e muito me espantei quando a abri. Lá estava o cachimbo, alguns maços de cigarros, alguns charutos, duas garrafas de alguma vodka aparentemente "da boa", duas garrafas de vinho e uma de rum.
Não me lembro de ter colocado nada daquilo ali. Não me lembro de ter carregado todo aquele peso, tampouco me lembro de ter sentido diferença no peso quando apanhei minhas coisas naquela manhã.
Entretanto, lá estavam elas.
Hoje, eu acordei no lugar de sempre, ao lado de minha já extinta fogueira, tudo em ordem. Mas as garrafas estão pela metade. Eu me lembro de ter enchido a cara ontem, mas...não me sinto mal. Não tenho ressaca. Uns doze cigarros sumiram. Não estou todo entupido, com nenhuma falta de ar. Nunca havia conseguido fumar nada antes sem passar muito mal, sem ter asfixias, tosses eternas e todo aquele maravilhoso catarro.
O que está acontecendo neste mundo? O que está acontecendo comigo?
Não sei dizer, não mesmo.
Minha cabeça lateja. Por onde começar?
Abandonei estes escritos por um bom tempo. Perdi grande parte do que já havia escrito, devido a meus devaneios destes últimos tempos.
Não me orgulho do que fiz, mas também não sinto nenhum remorso.
Estou ficando meio doido já, pelo visto. Bem, comecemos do princípio. Alguns dias depois de ter encontrado aquela esquecida guitarra, minha insônia voltou. Com força. Fiquei uns três dias sem nem ao menos me sentir cansado, mas mesmo assim, eu queria dormir de qualquer maneira. O sono é um excelente passatempo quando as horas são completamente livres e sua única obrigação é manter-se vivo.
Ao fim da terceira noite em que velei incessantemente noite afora, até o raiar do dia, eu saí cedo daqui de "casa" e me pus a andar a esmo pelas ruas. Quando o sol já estava alto e a fome começou a aparecer, me dei conta que não sabia onde estava. Havia andado tanto tempo apenas olhando para o chão, no piloto automático, que passei do ponto e estava numa área por mim ainda desconhecida. Nenhum ponto de referência.
Como tenho o senso de orientação digno de um cachalote em terra firme, acabei me perdendo mais e mais a medida que tentava encontrar algum modo de voltar ao meu canto. Depois de várias horas rodando e rodando, me vi diante de um monumento carcomido, uma espécie de praça central. Eu me lembrava daquela praça, do tempo em que as coisas ainda existiam propriamente ditas, e me espantei com o estado arruinado do monolito central, agora um monte de escombros esquecido.
Não sei ao certo o que aconteceu ali, mas afirmo que foi algo muito estranho. Enquanto contemplava o monumento, me aproximei um pouco para tentar ler o que estava escrito na placa de identificação, e...não sei.
Houve um momento em que tudo sumiu, mas...não foi bem um desmaio, não foi nada. Eu estava caminhando em direção ao monolito, e olhando para a placa, e de repente...eu não consegui mais enxergar nada.
Havia anoitecido.
Sim, estranho, muito estranho. Foi como se entre dois passos meus em direção ao monumento, passaram-se umas cinco ou seis horas. Assim, do nada. Estava absolutamente escuro.
E eu estava ainda perdido.
Felizmente, eu sempre carrego comigo uma tosca mochila com alguns petrechos, entre eles a tal lanterna de fricção que havia encontrado naquele laboratório. Depois de uns seis minutos torcendo aquela josta, consegui uma carga para no mínimo conseguir entrar num dos prédios extintos ao meu redor e me abrigar um pouco. Algumas noites, costuma haver tempestades de poeira por aqui, então resolvi não arriscar.
Dentro do tal prédio, improvisei um acampamento, consegui acender uma pequena fogueira, e lá fiquei, olhando para o fogo e tentando sentir algum sono, mas nada. Depois de um bom tempo, exasperei-me. Me levantei, fiz mais carga na lanterna e comecei a explorar o prédio.
Resolvi descer uns degraus e virar à esquerda num corredor estranho. Eu tinha uma estranha sensação de perpétuo dèja vu, como se já estivesse estado ali. Como se eu soubesse para onde ir. Entrei numa sala, aparentemente deserta, mas segui reto em direção à parede oposta e empurrei a porta aparentemente secreta que ali havia.
Como eu sabia que existia aquele compartimento escondido ali, não descobri até hoje, mas eu parecia estar meio que em transe. Supus que fosse culpa do período estendido de insônia.
Bem, dentro daquele quarto secreto...Havia uma imensa quantidade de garrafas. Vinhos. Vodkas. Whiskys. Tudo que se possa imaginar no univeros das bebidas destiladas. Várias garrafas vazias jaziam ao chão, mas haviam muitas, mas muitas garrafas fechadas, novinhas. Apesar de toda a poeira reinante.
Examinando o restante do quarto, descobri que ali não era apenas uma adega secreta, mas também uma tabacaria de primeira. Charutos. Fumo de rolo. Havia uma empoeirada mesa com tampo de vidro que encerrava um curioso cachimbo, aparentemente muito velho. Muito precioso.
Duas horas depois que havia encontrado aquilo tudo eu estava cantando feito um bobo alegre nos corredores daquele prédio. Resolvi descontar todos aqueles anos de abstinência, seguidos daqueles dias de absoluta solidão, me encharcado naquelas esquecidas relíquias. Enchi a cara até não mais poder, fumei uns três charutões, arranquei o cachimbo de sua perpétua redoma e o pus em funcionamento também. Eu tossia a não mais poder, e minha cabeça girava e girava, mas eu não me sentia mal. Estava muito bem.
Era muito bom se desligar. Ligar o foda-se. Afogar todas aquelas mágoas, toda aquela branca e imensa existência de nada sobre nada.
No dia seguinte, acordei de novo na tal praça, com um sobressalto. Me levantei cuidadosamente, já esperando a má onda da ressaca me atingir, mas...Eu estava me sentindo muito bem. Não estava com dores de cabeça, não estava entupido de catarro devido ao fumo...era como se nada houvesse acontecido. Mas eu estava trajando roupas agora estampadas por diversas manchas roxas, prova de que eu havia babado algum vinho.
Achei o prédio, entrei no saguão, achei minhas coisas lá esquecidas. Tudo em ordem. Juntei tudo, e resolvi tentar achar meu caminho de volta ao rio Porão. Mas quando ia saindo, lembrei-me da sala secreta. Será que eu deveria carregar algum daqueles líquidos esquecimentos, aquelas fumacentas distrações? Ou será que eu deveria deixar tudo ali, para não entrar na tentação de encher a cara todos os dias até morrer?
Meu lado mais fraco falou mais alto, e lá fui eu procurar a tal sala, em busca de algumas garrafas, alguns cigarros, alguns charutos. Foda-se, eu merecia: era o último ser humano por ali, quem iria me julgar? Eu mesmo? Meu determinismo de mandar tudo à merda estava em alta. Dane-se tudo.
Acontece que a tal sala não existia. Nem o corredor comprido o qual havia circulado na noite anterior. Rodei, rodei, procurei e procurei, só me detive quando percebi que as horas estavam passando, e eu estava quase morto de fome. Tinha que achar meu acampamento, e rápido. Saí esbaforido do prédio e circulei um bom tempo até encontrar um de meus marcadores numa esquina; virando à direita, encontrei a trilha que buscava. Estava salvo.
Alguns passos adiante, encontrei o rio. Segui adiante, e lá estava minha "casa". Meu cantinho na sombra, tudo certo. Fui imediatamente procurar uma de minhas conservas de carnes toscamente defumadas; estava de fato faminto. Me fartei daquela carne sem sabor, mas que havia se tornando estranhamente suculenta devido ao meu estado de crescente fome.
Fui apanhar minha garrafa pequena de água em minha mochila e muito me espantei quando a abri. Lá estava o cachimbo, alguns maços de cigarros, alguns charutos, duas garrafas de alguma vodka aparentemente "da boa", duas garrafas de vinho e uma de rum.
Não me lembro de ter colocado nada daquilo ali. Não me lembro de ter carregado todo aquele peso, tampouco me lembro de ter sentido diferença no peso quando apanhei minhas coisas naquela manhã.
Entretanto, lá estavam elas.
Hoje, eu acordei no lugar de sempre, ao lado de minha já extinta fogueira, tudo em ordem. Mas as garrafas estão pela metade. Eu me lembro de ter enchido a cara ontem, mas...não me sinto mal. Não tenho ressaca. Uns doze cigarros sumiram. Não estou todo entupido, com nenhuma falta de ar. Nunca havia conseguido fumar nada antes sem passar muito mal, sem ter asfixias, tosses eternas e todo aquele maravilhoso catarro.
O que está acontecendo neste mundo? O que está acontecendo comigo?
Não sei dizer, não mesmo.