quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Mr. Coffee Hyde.

Dia como outro qualquer. Há que se acordar cedo, para ir dormir cedo, fazer valer o que faz a pena, o que faz o dia valer a pena. Pensamentos infundidos, difundidos por uma arcaica fita ká-sete a rodar em um igualmente anacrônico sistema de som à cabeceira daquele Senhor. Ânimo para a luta diária. Blah e blah.

A noite, ainda teimava em continuar em suas vistas, em sua mente, em seus pensamentos. O mundo não existe, não antes da primeira xícara de café, bem sabia ele. Diziam que seus tremores, seu estado agitado de nervos, todo seu frenesi era decorrente do consumo excessivo de vinte ou cinquenta chávenas de tal infusão. Ou seriam canecas? No momento, tudo que conseguia pensar era na primeira dose, o aroma, a fumaça, o negro e espesso aspecto do café que ele mesmo preparava pelas manhãs, tão forte que era servido em fatias.

Mas...ao abrir a porta da despensa, se lembrou do ocorrido na noite anterior, em que chuvas intensas impediram-lhe de chegar ao supermercado e renovar o estoque de grãos torrados e moídos, usados para a preparação de tal elixir.

Sentiu um tremor percorrendo seu corpo. Calafrios. Sabia o que significava isso. Ter de esperar chegar ao serviço público, ou antes púbico, para se afogar no mixo café lá servido, isso era inconcebível. Revirou furiosamente a despensa em busca de alguma réstia de pó. Achou apenas farelos passados em uma enferrujada lata esquecida por detrás de tantos condimentos; Mitra, para que tantas especiarias em seu caminho?? O pó quase não tinha mais cheiro, mas seu estado de nervos era tão crítico que não pôde resistir. Improvisou um canudinho com um envelope de papel que embalava um tempero qualquer, e aspirou diretamente da lata para suas fossas nasais, o conteúdo da lata.

Imediatamente sentiu uma aflição ainda maior a percorrer seus sentidos, ao perceber que tal experimento era ineficaz para atender seus anseios: o envelope embalara pimenta do reino em pó, e o café em si não foi absorvido por sua mucosa do jeito que sua confusa cabeça esperava que acontecesse. Sentiu uma angústia icomensurável tomar conta de seus sentidos, assim como uma crise de espirros e sensação de queimação intensa como jamais experimentara na vida. Tombou para trás, atônito em seu sufoco. Caiu por cima de laranjas, toranjas e cajus secos que mofavam em fruteiras anônimas ali. Não bastasse isso, um violento espirro sacudiu as estruturas de outra prateleira da despensa, e latas e mais latas de atuns, leites condensados e em pó caíram-lhe por cima do corpo já deveras aturdido e contundido daquele Senhor.

Saiu dali esbaforido, e pôs-se a vestir imediatamente. Sabia que em seu emprego encontraria aquele ralo café, mas que bebido aos litros, aplacava-lhe a necessidade diária de tal molécula. De repente, a fita K7 que ainda continuava a dizer blandícias toscas em forma de arranjados, planejados encorajamentos vazios, parou de mataquear inutilmente, para se embolar toda no artefacto. Ele deu um safanão no aparelho, que tombou ao chão, mudando da função "TAPE" para "RADIO". E então o Senhor escutou:

"A guerra da Conchinchina estourou em todos os lados, a leste a oeste. E creio que a nor-noroeste também. Os primeiros países a tombarem diante da bomba verde de metano produzido por vacas holandesas foram Colômbia, Estados Fudidos da América do Norte, Laos e Goa, apesar deste não mais existir enquanto país desde láááá longe no passado. Mesmo assim, embargos financeiros foram instituídos mundo afora, e a crise de 1929 fez seu retorno com força desde a zero hora de hoje, que se tornou ontem desde a meia noite. A produção de café brasileira está seriamente comprometida, pois bombas de efeito moral foram arremessadas contra cafezais, que se encontravam infestados de chineses da con, ou conchinchineses, ou algo que o valha. Tais bombas tiveram efeito muito negativo sob a moral dos cafeeiros, que tombaram mortos devido à súbita realização que a moral neste apís de merda anda mais por baixa que minhocas em fértil solo. A polícia não quis comentar o caso, preferindo ir tomar uma cervejinha no bar mais próximo. O subcomandante do exército apenas disse que "Por mim eu só tomava suco de cevada até morrer. Fodam-se os cafézes." O IML divulgou também que o número de mortos em tal empreitada beira a casa dos bilhões, com desvio-padrão de +/- seis bilhões."

O grito que sucedeu no bairro em que Senhor residia pôde ser ouvido por todos os estados setentrionais do sul do Brasil. Não era possível, não conseguia crer em tal declaração radiodifundida. Como assim, o inferno havia decidido migrar para a superfície terrestre? Antes estava tão direitinho, estabelecido em Hades da abobóda celeste. Sentiu que seu coração não iria aguentar. Sentia os primeiros efeitos da abstinência prolongada, de cerca de duas horas desde a última golada da infusão sagrada. Frias e espessas gotas de suor a descer por suas costas. O frenesi tomava-lhe conta dos sentidos rapidamente. Sede de sangue!

Isto é, de café.

Rasgou suas roupas todas, pôs fogo na lata de lixo do banheiro, quebrou o vaso sanitário com os dentes, e passou fio dental cuidadosamente. Há que se preservar a dentina. Armou-se de um machado e uma serra elétrica, estranhos itens que um servidor público, isto é, púbico, pode adquirir com módicos descontos às lojas do Paulo, perto do Mercado Central, e invadiu de supetão o corredor do prédio, onde bufou de ódio perante o hediondo papel de parede, que dançava com todas aquelas horrenda margaridas pessimamente desenhadas em sua estampa. Arrancou grandes porções daquela injúria visual, e pôs-se a dar golpes violentos de machado à porta do Vizinho. Café! Ele sabia que deveriam ter café ali! Tinha certeza!

"Já vai," disse sonolenta a sogra do Vizinho. Assim que a velha retirou a corrente de segurança e abriu sonolentamente a porta, foi surpreendida com uma lâmina cortante em suas fuças, e caiu irremediavelmente morta ao chão. O Vizinho, que assistiu lentamente a cena, balbuciou, "Ah bem, depois eu dou o resto da véia pros cães." Senhor, que já invadira bifando o recinto, exigia, "CAFÉÉÉÉÉ´´´´´!!!" Vizinho só disse, esboçando um gesto de impaciência, "Calma, caro Senhor. Sente-se, abanque-se. Irei buscar um bule fresco para ti. Não é preciso que me grites com tantos acentos soltos no ar. É preciso não desperdiçar os sinais de pontuação em estes tempos de crise latente."

Senhor sentou-se nervosamente à uma cadeira, pelo Vizinho ofertada. "Gostaria de uma torradinha de pão de centeio para acompanhar?" - "Sim, se não for muito incômodo," disse Senhor, tentando recompor sua compostura há muito perdida. Enquanto o Vizinho saiu para providenciar, o poodle da casa veio latir nervosamente, insistentemente perante os pés de Senhor, que apenas tomou tal canídeo nas mãos, abriu a janela e arremessou-o na direção su-sudoeste, tomando o cuidado de antes checar a direção do vento em sua biruta de bolso. Onde estaria guardado tal instrumento, já que não havia bolsos em seus farrapos que trajava, esta era a questão. Talvez os chineses saberiam o que fazer com tal demoníaco ser.

Seu trem de pensamento foi interrompido pelo Vizinho, que anunciava a chegada do café. Novamente, sentiu o frenesi tomar conta de seu ser, e tomou apressadamente a garrafa térmica das calmas mãos de Vizinho, que não protestou. Senhor pôs toda a garrafa na boca, e mastigou nervosamente tudo aquilo, já sentindo o deleite de poder se apoderar metabolicamente da afamada molécula. Mas, os cacos de vidro espelhado e fragmentos de plástico não foram distrações suficientemente eficientes para que Senhor pudesse constatar que o que a extinta garrafa continha não era café.

Cuspiu violentamente os restos mortais do recipiente, muito sangue e cacos de vidro, e bufou: "ISTO NÃO É CAFÉÉÉÉÉ´´´´´!!!!" Ao que vizinho, sentindo a imensa corrente de vento decorrente dos plenos pulmões a gritar a plenos pulmões de seu vizinho, apenas constatou, "Não me grites! Não gastes acentos indevidamente, caralho! Sim, é café, mas descafeinado. Meu médico me disse que preciso regulara pressão. Joguei fora no incinerador do prédio todos os sacos de café normal que aqui em casa restavam. E a torrada, vai querer com ou sem--"

Não pôde terminar a frase, uma vez que a moto-serra de Senhor havia fendido-lhe o crânio diante de tal infâmia. Urrou de franco ódio, atraindo para o prédio todas as tropas inimigas do Arzebajão que tomavam de assalto as ruas daquela Cidade. Ouviu seu urro ao vivo no aparelho televisor, que anonimamente assistia a tudo, e informava, "As tropas Albanesas agora parecem se dirigir para este prádio na rua Humboldt, onde um monstro por mim avistado, acaba de matar friamente seu Vizinho. O poodle que se foda. Eu detesto requeijão."

Em seus embrutecidos sentidos, Senhor sabia que seu tempo estava se esgotando. Entretanto, alguma réstia de sentidos, lhe bastaram para saber o que tinha que fazer. O incinerador do prédio!! Aquele biltre do Vizinho tinha arremessado sabe-se lá quantos sacos de café ali!

Sentia o rufar de tambores, e o cintilar dos metais dos tanques das tropas da Armênia se aproximarem rapidamente. Não havia tempo para elevadores ou escadas; era agora ou nunca.

Abriu a portinhola que conduzia ao incinerador e se jogou no apertado tubo metálico que conduziria à sua mais completa - e última - glória. Sentiu a velocidade aumentar ao passo que sua energia cinética era aumentada pela energia potencial gravitacional, ou alguma baboseira física ou tísica que ainda lhe retumbava os sentidos. Sentiu o aumento da temperatura decorrente da aproximação daquele inferno interior do prédio. Sentiu suas carnes em chamas, por estarem assim dispostas, expostas dentro de um incinerador. Urrou de dor, mas ainda assim, avistou no meio das chamas, o seu útlimo objeto de desejo: uma lata de café.

Engatinhou dolorasamente em tal direção, enquanto sentia que o fogo lambia-lhe o que ainda lhe restava de tecidos conectivos vivos e funcionais de seu corpo.

Lá fora, os tanques e veículos anfíbios da Inglaterra se posicionavam para desferir o golpe fatal contra aquele hediondo assassino...de papéis de parede ingleses rudemente vandalizados no corredor. Prepararam a catapulta, com carga de uma autêntica bomba de nêutrons. E ovos podres.

Senhor sentia que a vida abandonava cada vez mais rapidamente aquele maltratado corpo, mas sabia que era preciso adquirir a lata. Sentir pela derradeira vez, o aroma de tais grãos. Sua epiderme já havia derretido e se desprendido de 95% de seu corpo, e agora os músculos se tornavam carne cozida, ou melhor, churrascada. Estendeu a mão em derradeiro esforço, apanhou a lata.

Lá fora, os Chilenos já haviam aprontado a catapulta e arrumavam os úlimos ovos podres na cesta, ao lado da bomba H. Acertaram o relógio para o horário correto, e fizeram mira.

A dor era insuportável, mas Senhor tinha que vencê-la, tinha que cumprir seu destino. Com debéis e derretidos dedos, fez descomunal força para abrir a lata. Seus ressecados e quase cegos olhos, puderam emitir ainda algum brilho quando tal tampa cedeu; ele se precipitou a direcionar o vasilhame em direção a suas arruinadas narinas.

Os Porto-riquenhos já haviam preparado todos os detalhes e agora, mãos nervosas se dirigiram para a alavanca.

O aroma lhe falhava a chegar, mas a vida se exauria rapidamente naquele inferno. Pensara ter visto, lido na lata chamuscada, os dizeires, "café descafei..."

Mas era tarde demais. Em um átimo, o projétil de fusão atômica fora arremessado pelos Marroquinos e atingiu a estrutura do prédio, obliterando tudo e todos do mapa, e impedindo que o grito de protesto daquele amante incondicional de café, CAFÉ propriamente dito fosse escutado por algum ser vivo, naquelas redondezas.