terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Nas ôndias.

Naquela noite, estava mais cansado que o normal, mas era um bom cansaço. Uma canseira típica de se ter ralado muito no dia anterior, muito mesmo. Mas a minha epopéia era muito menos digna, por assim dizer, de romances marxistas ou tratados trabalhistas; não estava eu ali a movimentar minha carcaça pelo proletariado ou nada do gênero.

Em verdade, estava eu ali contrariando muitas das regras tradicionais do bom estudante. O ano era 1998, e pela primeira vez em muitos anos, eu estava vendo novamente o mar diante de meus olhos, coisa que como costumam dizer, tem um certo poder sobre os homens. Mexe com algum rodel interno, faz-nos refletir, põe a cabeça em movimento, vai e volta, bem como as ondas na costa. E naquele ano, eu conheci o verdadeiro paraíso terrestre, localizado na Bahia, com pouso tranquilo entre morros e mata Atlântica, essa até então desconhecida.

Mas eu me sentia como se estivesse vendo o mar pela primeira vez. Nunca, nunca antes havia visto uma água tão límpida, uma praia tão bonita, um conjunto inteiro de perfeição a perder de vista. A varanda da casa não ficava nem a vinte passos do encontro das águas do rio Jeribucaçu com o Oceano Atlântico. E o melhor elemento....não havia ninguém por perto. Ninguém. A não ser nós, os reis da praia.

É fácil ser realeza quando se tem uma população que compreende você e seus amigos.

Naquele ano, a UFMG nos agraciou com uma greve que perdurou seis meses, e antes mesmo do término da paralisação, eu já estava enamorado com aquelas terras, com aquele mar, com aquela praia. Na ocasião do feriado de Primeiro de Maio, eu já havia estado ali. E soube que minha definição de beleza terrestre para sempre havia mudado.

Quando a josta da greve estava para acabar, foi-me oferecida mais uma estadia no paraíso, desta vez por três semanas initerruptas. Imediatamente, soube que seria uma daquelas famosas oportuinidades únicas que a vida nos oferece. Hmmmm....ir para lá ou voltar para a faculdade? Aprender a se adequar devido ao bel-prazer de alguns professores ou aprender a surfar?

"Onde assino para trancar o semestre?"

Quando em Itacaré cheguei, soube que não havia cometido um deslize grave. Soube inclusive, meses mais tarde, que foi uma das decisões mais certas que já tomei na vida. Então, me esbaldei ao visualizar mais uma vez aquela varanda e sua visão do oceano. Ali tudo é mais, tudo é mais certo, mais bonito. Mas não somente de belas vistas fui agraciado naquela viagem.

Conforme sugerido antes, estava meu anfitrião empenhado em tentar ensinar a todos seus amigos mais próximos, a "arte" de surfar. Eu, com meus quase oito graus de miopia, minha fama por detestar todos os esportes e minha forma física um tanto patética, não levava muita fé na coisa, mas me esforçava em tentar aprender algo.

De fato, aprendi muito naquele mês. Eu descobri que mesmo sendo atrapalhado e menos capacitado que muitas pessoas, eu estava fazendo coisas que nunca supus ser possível para um nerd autêntico como eu fazer. Havia aprendido a apanhar as ditas "espumas" na arrebentação e ficar de pé na prancha enquanto a semi-onda, por assim dizer, te carregava. Para mim, já era um feito extraordinário.

Mas o Gengiva queria mais. Queria me ver no fundão com a galera, passar a arrebentação e ficar lá, escolhendo sua onda. O mar de Julho sempre foi mais revolto, e haviam ondas bem grandes para um mineiro branquelo que se foi meter a surfista. A primeira vez que se passa a linha das ondas, é algo meio que assustador. Você sabe que está numa aréa extremamente funda, e com correntezas. E as ondas são muito maiores de perto do que lá de fora.

E eu caía e caía, tomando altas "vacas", tomando vários goles da água salgada. Como é de praxe de um Buriol como eu, eu não sabia lidar com tal frustração, ficando cada vez mais puto e atrapalhando-me deveras.

E como a coisa cansa. Cansa, muito mesmo. Seus braços parecem que vão cair, no final de um dia daqueles. As férias chegavam ao fim e eu ainda não tinha tido jeito de conseguir apanhar uma onda de verdade, mas todos os dias eu lá estava.

Um final de tarde, quando o sol já estava se abaixando no horizonte, lá estávamos nós em mais uma "bateria" onde eu só tomava tombos. A coisa que eu sabia que estava errando era a avaliação de "ondas em potencial" que vinham se formando. Com minha miopia de Mr. Magoo, eu ficava lá naquela dúvida, "é ou não é uma onda?" e perdia muitas. Ou tomava aqueles imensos caixotes na cabeça.

Um dado momento, eu vi algo que parecia ser uma onda, e me pus a remar para tentar mais uma vez...E a coisa crescia de tamanho e me puxava, e eu, cansado pra caramba, batia os braços feito um desorientado. De repente, numa fração de segundo, senti a prancha se posicionar com o bico na direção da praia, e a onda estava me carregando. E este milésimo de segundo me fez saltar na prancha, fazendo aquele movimento que meses antes Gengiva tinha me ensinado e que as espumas tinham de mim cobrado o aprendizado.

Deu certo, sabe-se lá como. De repente, eu estava de pé descendo uma onda que devia ser rídicula em altura, mas para um cara como eu...foi como se estivesse descendo uma tsunami.

Acho que poucas sensações se equiparam àquilo.

E eu gritava a plenos pulmões, tamanho foi meu entusiasmo. Poucas ditas "realizações" em minha vida causaram-me tamanha alegria. Mesmo sem estar enxergando nada direito, eu via aquela espuma límpida sendo rasgada pela prancha, e sentia na cara um vento bom. Tudo era bom, tudo estava em ordem. Quando na praia cheguei, fui muito congratulado pelos meus confrades, e voltamos imediatamente para o fundo. Apesar do dia estar já quase morto, ainda consegui apanhar mais umas duas ondas, sem nem saber como eu estava fazendo aquilo. Como diriam sábios do cancioneiro popular da Austrália,

"Don't listen too hard to the beating of your wings,
Or you might fall.
You only do what you do because a part of you believes
that you're here at all."

Certo, certo. Eu sei que foi uma das melhores coisas que já fiz na vida, ter atendido ao chamado da irresponsabilidade naquele ano de 1998. Fez-me muito bem, ter esta noção que nem sempre somos tão fracassados como a lógica dita. Nem sempre. Às vezes surpresas podem acontecer, mesmo com realizações ditas tão impalpáveis para aqueles que nunca as vivenciaram.

Eu senti tudo aquilo. E me fez muito bem.