quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Epitáfio.


Não.

Nada te prepara para isto.

Após uma viagem apreensiva de táxi, cheguei ao famigerado IML. Haviam me despertado no meio da madrugada por uma ligação nada agradável. Nada.

Ainda tonto de sono, não podia acreditar no que ouvia. Simplesmente me recusava a acreditar. Mas ninguém brinca com uma coisa dessas. Saí às pressas, ainda zonzo. Não eram nem cinco da matina.

Fiquei aguardando em uma sala fria. Tudo ali era frio. Mas não esperava ser diferente.

Seria verdade, mesmo?

Ao mesmo tempo que procurava negar, sabia que tudo aquilo não estava longe de ser verdade. No fundo, eu até esperava isto. Tentava me preparar por vezes, nas fases piores que ele atravessara. Ultimamente, ele havia passado por uma fase terrível, em que se isolou ainda mais que o de costume. Muitos de nossos amigos diziam que ele devia estar imerso em um mundo de drogas pesadas e sabe-se lá mais o quê. Nunca perguntei. Tentava respeitar sua privacidade.

Talvez tenha sido este meu erro: por vezes sentia seu desespero, sua incapacidade de se comunicar. E sentia mesmo às vezes uma certa hostilidade nele, como se indignasse de não tentar saber o que estava errado. Porque algo estava errado, sempre.

A maioria de nossos companheiros havia desistido de tentar argumentar, de tentar fazê-lo ver as coisas de forma diferente. Sim, muito da culpa era dele mesmo: por vezes, ele se tornava tão fatalista, tão...teatral, exagerado perante problemas comuns, e com reações negativas aos comentários jocosos(porém raramente cruéis) de nossos compatriotas, que a maioria de nós havia desistido de tentar argumentar.

Ele percebia e se calava. E mais e mais, se tornou inacessível, tal era sua soberba. Por vezes, isto complicava ainda mais as coisas. Raramente ele pedia ajuda. Parecia que era algo ofensivo para ele mesmo.

Sim, não nego que a culpa era dele, eis que realmente poucas pessoas conseguem lidar com seus problemas e ainda ter que lidar com alguém tão complicado. Como um deles já havia lhe dito uma vez em um momento de impaciência, "não tenho filho deste tamanho".

Mas sempre tinha sido um bom amigo; parece que sempre tentava se desviar de suas próprias aflições tentando ajudar seus amigos. Tinha uma conversa boa, quando estava bem.

Eu tentava manter o contato, sempre que possível, sempre que ele me permitia ter acesso, ainda que restrito ao seu mundo. Ele sempre troçava de si mesmo, "acho que faltou pouco para eu ser um autêntico autista. Várias vezes sinto que não pertenço a este mundo" É estranho isto. Para nós, ele tinha tudo para dar certo, apesar de não conseguir fazer as coisas funcionarem.

Muitos de nós gozavam-no pelas costas, chamando-o de fresco, mimado...Haviam chamado-o de "adolescente terminal" uma vez, tal era sua incapacidade de lidar com estas "bobagens" e ser tão fresco. Ao que me calava, pois muitos de nós eram modelos típicos de "adultescentes". Eu tentava me manter distante de tais comentários, mas devo admitir que por vezes eu mesmo me sentia puto com ele. Dava vontade de bater, mesmo.

Mas cada um de nós tem sua forma de agir diante das agruras da vida. E acho que todos se esquecem que o refrão é verdadeiro: pimenta nos olhos dos outros é refresco.

Acho que ninguém nunca soube o que ele sentia de fato.

E ultimamente ele até parecia estar melhorando. Não, devia ser um engano. Tudo aquilo, eu digo. O fato de estar em uma sala de espera no IML. Era engano.

Chamaram meu nome. Acompanhei um senhor de jaleco por um corredor frio nas entranhas daquele edifício, com uma sensação difícil de ser definida. Um misto de apreensão, tristeza e...raiva. Aquilo era o cúmulo. Se ele realmente estivesse ali, eu dizia pra mim mesmo que iria despertá-lo a bofetadas. Ora! Vai dar susto na puta que o pariu.

Não, no fundo eu ainda não acreditava.

Me falaram para aguardar diante de uma janela fechada, escondida por uma persiana branca externa. Foi ali que o tremor tomou conta de mim. Os momentos que ali passei ninguém merece experimentar.

Abriram a persiana.











Não.


Nada te prepara para isto.


Nada.









Estonteado, assenti com a cabeça para o responsável por aquele frigorífico de gente morta. As pernas bambearam.

Tinha que sair dali.

Saí cambaleando pelos corredores. Um legista veio atrás, dizendo coisas que não entraram em meus ouvidos, desistindo de me seguir quando saí daquele malfadado lugar.

Me apoiei em uma parede e senti.



O choro. Espasmos como se fossem ondas de vômito.



Não.

Nada, nada pode te preparar para isto.