terça-feira, 29 de março de 2011

Morta noite.

Inútil. Continuar ali seria.

Os segundos, que tanto costumavam passar rapidamente em apertadas horas do dia, em momentos em que prazos venciam e tudo parecia estourar, agora eram contados em produtos de centenas de milhares. Sentou-se à beirada da cama, esfregou os olhos. Que horas seriam?

Meneeou a cabeça. Faria alguma diferença? Não muita.

Naquela cidadezinha, a vida era tão devagar quanto os minutos na calada insone da madrugada. Desde que aceitara o oneroso, pesadíssimo peso de herdar uma grande casa somada de grande quantia, bem sabia deste fato inegável. Quanto menor a cidade, maior é o tempo. Maiores são as fofocas. Oh, como são maiores as fofocas.

Pensara que faria bem em se mudar para o solitário sobrado herdado, e lá estava ele. Tal herança chegara em oportuníssima hora, momento em que mais uma vez cogitara encurtar abruptamente seu prazo de validade terrestre, uma vez que mais uma vez falhara em trilhar com sucesso nova oportunidade ofertada por alguns amigos, os poucos que nele ainda depositavam alguma confiança. Sentira-se tão imbecilizado e tão envergonhado, chegou mesmo a comprar, com seus últimos trocados, duas caixas de potentes barbitúricos e uma garrafa de potente porém vagabunda beberagem alcóolica. Organizara seus afazeres, queimara seus segredos que não esperava encontrarem após sua extinção, e esperara a coragem chegar.

Não chegou. A tempo, entretanto. Logo, logo, veio a notícia do falecimento de distante parente, dono de toda aquela imensa casa vazia, daquele imenso numerário, parente este que visitara muito tempo atrás, e com ele confraternizara, compartilhavam de muitas opiniões atravessadas, alienadas pela maioria dos homens, idéias sobre vida e morte, sociedade e saciedade, modernismos incongruentes e fascismos ditados pela moda, pela igreja, pelo estado.

Passara ele na sua frente, o parente. Descarregara uma velha espingarda calibre doze nas fuças, semanas atrás. Deixara quase tudo para seu torto sobrinho, com a condição que a casa habitasse. Nem chegou a pestanejar muito. Acertou as dívidas que ainda existiam, enviou toda sua tralha para a solitária casa e para lá se mudou. Adiara momentaneamente a excursão para alhures locais, além desta terra, deste planeta, destas pessoas tão insolentes e de toda esta merda. Por hora. Agora que não necessariamente devia nada a ninguém, quem sabe? Talvez encontrasse alguma motivação real.

Ouviu as fofocas das tias velhas, lamúrias pelas vidas reumáticas e ausência de dinheiros, aceitou visitas incômodas de estranhos desconhecidos que afirmavam ser credores de seu tio, tolerou duas semanas, até comprar um par de imensos canzarrões que agora reinavam no terreno circundante à casa. Estragou de propósito a campainha e gozou de merecido silêncio. As pessoas, sempre lhe perseguiam. Não desta vez. Elas que se danassem. O espaço que separava a porta da frente do portão de sua propriedade era suficientemente grande para isolar acusticamente seus ouvidos dos clamores dos reclamantes.

Após ter feito tal revisão interna dos acontecimentos passados nos últimos tempos, olhou para o imenso e antiquado relógio à cabeceira da cama. Cinco minutos haviam se passado. Suspirou fundo e se levantou. A casa era grande, andaria de quarto para quarto, de cômodo para cômodo, até o sono chegar ou o dia raiar. Estava farto de insônias; se acostumara com quase tudo na vida, mas não com a ausência daquele escape perfeitamente legalizado da realidade, da vida, que apesar dos novos números e da nova casa, continuava insossa e ausente de vida propriamente dita.

Caminhou no escuro, esbarrando em móveis. Nem se incomodou em acender luzes. Onde quer que o sono batesse, ele encostaria e dormiria. Passo a passo, rondava como um fantasma pelos silentes cômodos. Silêncio, silêncio. Negrume quase completo nas vistas, e por vezes o detector de móveis no escuro - suas canelas - se chocavam com objetos não identificados, que eram devidamente chutados e xingados.

Idiota, acenda a luz. Não queria. Não sabia por quê, mas não queria. Lá fora, tudo era silêncio, a não ser pelos insetos da noite, pelas corujas que por vezes piavam, e pelos qui-qui-quis dos morcegos que por ali passavam, engolindo insetos. O latido ocasional de seus cachorros. Fora isto, nada. Bem diferente da biboca tosca que residira naquela cidade grande, agora tão distante. Como eram barulhentas as noites ali. Talvez fosse isso, seus ouvidos ainda sentiam falta de ouvir todos aqueles urbanos rumores.

Entrou num banheiro, tateou até encontrar a pia, lavou o rosto, sorveu um tanto do líquido, bochechou. Frigidíssima água aquela, e um tanto ferruginosa também. Gosto de sangue, óxido de ferro, hemoglobina. Ha! Como seria hilário acender a luz e---

Clic.

Luzes que lhe cegaram momentaneamente as vistas. Porra! Só faltava esta. Sistemas elétricos malucos naquela casa, que acendiam do nada. Esfregou os olhos agredidos pela luz repentina, e quando os abriu, olhou para o espelho.

Água na face...água...vermelha?

Cambaleou para trás, olhou para a pia, onde a água ainda corria. Água? Ou...

Sangue?

Os esbugalhados olhos se voltaram para o espelho. Viu novamente sua cara aterrorizada, e por detrás de sua cabeça, alguns passos atrás...uma coisa, um vulto, algo que não sabia o que era. Sentiu a pressão sanguínea subir até o limite do suportável, parou de respirar. Não vislumbrou a vida toda passar, pois estava muito assustado para pensar.

Não viu nem sentiu mais nada além de estranho sussuro em seus ouvidos. E a escuridão se fez novamente reinante.