Não soube bem precisar que horas eram. Algo em torno de uma da matina, provavelmente. Algo assim. Acordou com o miado aborrecido do gato da casa, que ultimamente teimava em fazê-lo durante a madrugada, vingança alguma sorte de maldade, contra ele, o universo conspira. Que fiz de errado agora, para merecer tal castigo, ele se pergunta. Delírios. Sim, bem sabia ele. Mania de achar que tudo conspirava contra ele. Sempre assim. Xingou o gato com um chiado exportado da índole do pai, uma espécie de assobio calante, algo condicional e hereditário...mas que não surtiu nenhum efeito sobre o maldito felino.
Minutos que escoavam devagar, a noite e seu eterno vórtex por sobre a cama, naquele sótão, naquele local tão poeirento e por todos estranhado. O que fazes aqui, perguntava um de seus fantasmas. O que ainda procuras aqui. Nada? Tudo? Talvez um misto de ambos, uma vez que nada encontrava mas tudo procurava, dia após dia, noite após noite, hora a hora, assim seja. Levantou-se pesadamente para ir ao banheiro, talvez fosse aquela fina e insistente vontade de se aliviar que estivesse mantendo-o acordado. A esta altura, o gato calara-se. Sentiu na pele o incipiente inverno que já começava a chegar, outono é o caralho. Tudo de errado com o clima, com o planeta, com as pessoas, que tanto destroem tudo para se reproduzirem, deixarem fétidos descendentes, cadáveres adiados que procriam, como diria Campos, o de Carvalho. E para quê? Para quê insistiam sátiros e sádicos pais a trazerem filhos para este mundo? Para disseminar ainda mais o sofrimento, a aflição global?
As horas pesavam. Novamente debaixo das cobertas, sentia o cansaço tomando conta de sua mente, mas o sono não vinha. Rolar, para cá e para lá. Pensando, o que estou fazendo aqui, o que estão fazendo ali, o que fazem com as coisas, como irei pagar as contas, comprar coisas que não preciso, apenas para me dar falsa alegria consumista, apenas para se ter "objetivos" mais tangíveis que meus sonhos? Sonhos, que iam e vinham na vígilia eterna da noite, momentos entrecortados de lucidez e sonho. Números triangulares, fileiras de caracteres, aspectos condicionais, iterações. Identações e matemática, tudo que jamais imaginara ter de aprender, tudo aquilo que jamais achou ser possível entrar em sua cabeça, agora era cerne de irrequietos pensamentos e delírios na calada da madrugada, em sua mente, em sua cachola que teimava em não permitir que tais agentes invasores contaminassem e exterminassem ainda mais tudo que ele pensara ser um dia, todos os demais sonhos, todos mortos, todos tombados. E a certeza, a infalível certeza de que iria novamente falhar na mais nova tentativa que alguns amigos lhe ofereciam de sair da merda, imperava em sua mente. Não sabia pensar daquela forma, não sabia agir daquela maneira. Vais falhar, vais desapontar seu outro irmão, vais fracassar. É seu motivo de existência, fracassar.
Toda sua incompetência perante a vida, todas as vezes que poderia ter feito a diferença mas não fizera nada, por medo, por preguiça. Preguiça. Preguiça de viver, de crescer, de ser. Para quê? Para não ser pago? Para continuar vivendo no sótão, sabendo bem o que era - o contrário do que escrevera dias antes, em seus murais de lamentações virtuais. "Todos são como sombras," disse ele. Não.
A sombra, era ele.
Interrompeu-se para se lembrar do horário de despertar, o aparato celuloso que usava apenas como relógio e despertador. Ninguém ligava, em todos os sentidos. Mas, bem sabia ele que o recíproco era verdadeiro. Ninguém se aproximaria dele, ninguém gostaria dele como amante, ninguém apreciaria seus sonhos e ilusões, catástrofe estendida do que era seu pai. Morreria sozinho, sem cometer o erro cabal de passar adiante o legado de miséria e loucura de uma vida de empáfia, orgulho besta e idéias inexequíveis e idiotas. Ninguém afundaria com ele na canoa furada que era sua vida, sua imbecil existência. Tão capaz, tão talentoso. Sim, pouco adianta ser tudo e não ser nada. Nada. Nada.
Novamente, o miado chato do gato inflamou sua raiva contra si mesmo, contra o mundo, contra o universo. Precisava de descontar em algo toda sua frustração insone, toda sua inexistência. Levantou-se com ódio sincero e apanhou a garrafa d'água, a lanterna. Perseguirei e molharei o infame felino. Morrerás, ó odioso gato que...
...não tem culpa nenhuma sobre o estado mental de um ser como ele. Suspirou pesadamente, guardou os petrechos de punição contra o barulho noturno. Para isto, e para isolar seus ouvidos dos clamorosos e odiosos rumores dos favelados que por aquele bairro teimavam em fazer festas barulhentas, existiam os tampões de ouvido industriais que comprara semanas antes. Antes isto que se expor ao vento frio da madrugada, também. Ha! Para que se proteger, para que adiar a chegada da Indesejada das Gentes? Para quê adiar a morte, se não existe vida?
Teimoso dos infernos. Dia anterior, escrevera débil oração para tentar manter seu ânimo perante a empreitada nova, sua mais nova certeza antecipada de falha. Nestas horas, sabia por que se isolava no sótão. Nestas horas, sabia, que era melhor, de fato, enlouquecer sozinho que corromper o bom humor alheio. Os incomodados que se retirem, pois não. Covarde dos infernos, só escolhia métodos lentos de encurtamento da inútil existência, cigarros, alcóol.
Mais pesadelos, mais linhas e linhas de código incompreensível para sua retardada mente de sonhador. Ninguém se aproxime, não se aproximem, não cheguem perto, não estraguem sua vida com este câncer que habita o esquecido cômodo incômodo daquela casa, daquele local.
Horas e horas, agora absolutamente silentes dentro de sua cabeça, ainda que seu subconsciente estivesse gritando a plenos pulmões. Ninguém ouviria, ninguém poderia ouvir. Enterrem este ser, matem este emo, era o que gritava. Tuberculose de séculos passados, o que fizeram seus compatriotas cientistas (ha, ha, HA! cientista, pois sim), em exterminar a pouca seleção natural que existia para eliminar tais seres da face da terra?? Por que acabaram com a tuberculose??
Não soube precisar a que altura o cansaço finalmente calou sua mente, suas vozes internas, todos aqueles demônios ululantes que somente ele enxergava, somente ele ouvia. Mas ouviu quando seu relógio-despertador disfarçado de celular vibrou por debaixo do travesseiro. Soneca, mais dez minutos. Agora que o sono veio, queres me despertar?? Era o que pensara. Pensou também no que faria para encontrar forças para continuar tentando a fazer aquilo que se comprometera a tentar fazer, seu caminho na serpente píton da matemática e da ignorância. Enquanto teimasse em continuar vivo, iria continuar teimando em achar a saída do beco sem saída da existência escrotorial mal-remunerada. Teimaria em se render ao público, acéfalo, concurso, para se embrenhar na selva da matemática computacional. Dois passos adiante, quinze para trás, todos os dias. Até se fartar e desistir? Não sabia, mas existia uma vozinha que lhe afirmava com convicção que sim, que falharia, que desapontaria a todos, novamente.
Levante-se, erga-se, ó Noiado. A noite acabou, e ainda que não tenhas encontrado alívio na madrugada, é preciso continuar. Esperança, onde estás? A última que morre? Como matar algo que nunca existiu além do campo onírico de toda uma vida?
Enfim. É a vida, é minha vida, pensou. Cale-se, continue. Sim.
Até quando?