quarta-feira, 23 de março de 2011

Todo mundo morre.

Começou na noite anterior.

Mais uma vez, barulhos externos de infímos vertebrados de estimação o mantiveram acordado por boa parte da noite. Até o momento que se fartou e resolveu agir, ainda que de forma impensada. Sorrateiramente, foi até o armário de remédios e fez uma seleção de artificiais agentes de "fazer dormir" - como a casa era composta de muitos membros problemáticos em suas mentes, não foi muito difícil fazer a seleção, tarjas pretas ali abundavam. Oito gotas disto, três comprimidos daquilo, glug, glug, glug, repita, agora lavando tudo com a mais pura aguinha russa ou simplesmente vodka, ainda que de russa não tivesse nada, miserável Orloff falsificada.

Mas...por acasos do tempo e da índole das pessoas que na casa existiam, alguns dos ditos rmédios estavam com mais tempo de existência que muitos aborrescentes escutantes de Justin Bieber ou de Rebecca Black por aí. O que não causou o efeito esperado no Noiado. O sono não veio, de forma alguma. O gato chiou novamente lá embaixo, e desta vez houve perseguição, xingamentos e borrifos d'água desferidos contra o felino. E os impropérios pelo Noiado desferidos contra o infame felino foram de tal magnitude acústica, que o Alemão de Araque, seu arqui-inimigo da vizinhança, também berrou estranhos xingamentos em sua "língua nativa".

O Noiado, que já estava ainda mais noiado que de costume, diante de tanta caceteação da vida, apenas desejou a morte horrenda de tal vizinho; imaginou centenas de facas trespassando seu corpo. A esta altura, o gato já tinha desaparecido dos arredores, e ele voltou cabisbaixo para sua cama. Conseguiu pregar os olhos por um par de horas, para ser despertado por sirenes e choro, gritos desesperados oriundos da casa do Alemão. Levantou-se tontamente e olhou pela janela. Carregavam o corpo desprovido de vida de sua Nêmesis local para o necrotério. Estava cravado de facas.

O Noiado franziu a testa. Como era possível que tal coisa tivesse acontecido? Depois de alguns segundos, entretanto, ele soube. E resolveu fazer o teste. Apesar de ser cedo, muito cedo, se vestiu, comeu alguma coisa e caminhou para o mirante que ali perto exisitia, onde - mais uma vez - os malditos favelados(estes orgulhosos de serem apenas isto, nao sentido mais depreciativo da palavra, e não pessoas desfavorecidas residentes naquelas comunidades toscas) tocavam aquilo que denominavam "música" - o maldito fanque carioca, esta abominação da natureza.

Lá chegando, se horrorizou com o volume de tal sessão de estranhos barulhos que era emitida de carros caindo aos pedaços, mas providos de aparelhos de som que valiam bem mais que as carroças que os transportavam. Se esgueirou pelos matos e escolheu seu alvo, um imbecil que cada vez mais aumentava o som de sua "caranga." Pensou em como seria legal se ele simplesmente explodisse em uma inexplicável massa de sangue.

Pop.

Gritos por todos os lados. O cara havia, de fato, estourado, do jeitinho que Noiado pensara. Um maléfico sorriso estampou seu rosto, e ele deixou sua imaginação correr livre e solta, liberta, descontroladamente liberta, depois de tantos anos e anos de frustrações, de ter de tolerar todos as injúrias pelos babacas proferidas. Segundos depois, o mirante havia se transformado em um cenário de inexplicavel massacre. O som ainda imperava, mas os donos dos carros e todas suas consortes e confrades não mais respiravam. Calmamente, ele caminhou até o pátiuo e desligou todos os aparatos sonoros. Ah. Silêncio. Como era raro, como era precioso.

Pensamentos contrários à sua raiva, clamantes pelo retorno de sua humanidade, vieram à tona em sua mente. Eram pessoas. Tinham famílias. Como poderia fazer ele tal coisa??

Fazendo.

Sentia a sanidade e o complexo de "Rei dos Bonzinhos", rei dos covardes, por assim dizer, se esvair diante de tanto poder em sua mente. O poder corrompe, de fato. E ele era a prova viva disto. Sentia doentia alegria ao descer calmamente a rua que o separava do ponto de ônibus que normalmente apanhava para ir ter ao seu horrendo emprego. Ao se aproximar, viu de longe um revoltante espetáculo: pivetes se divertiam esfrangalhando o abrigo do coletivo. O malévolo sorriso novamente estampou seu rosto, bem na hora que tais "pessoas" o avistaram. Ameaçadoramente, dele se aproximaram. "Tá olhando o quê, branquelo?"

"Eu? Nada. Apenas um bando de filhos da puta quebrando um abrigo de ônibus."

"Que foi que tu disse?!"

"Hmmm. Quer dizer que, além de filho da puta, é surdo, hein. Veremos isto ocorrer de fato."

O pivete correu em sua direção, mas estacou alguns passos antes de chegar perto de Noiado. Seu rosto se desfigurou em dor, o sangue jorrou de seus ouvidos e ele tombou ao chão, gritando, urrando. Seus comparsas arregalaram os olhos, mas foi somente isto que poderam fazer. Um deles teve a cabeça arrancada por invisível força. Outro, foi trespassado por milhares de cacos de vidro, aqueles que jaziam no chão diante ao destruído abrigo. O que restava, tentou correr, mas foi arremessado para o alto, voou até sumir de vista, para depois de muito tempo cair no meio da praça que ali perto havia.

Noiado se sentou no que restava do abrigo e esperou o próximo ônibus. Evidentemente, passou um famoso "Garagem." Pop. Uma massa sanguinolenta estava agora ao volante, não muito habilidosa na tarefa de conduzir um ônibus que ia para garagem alguma. O autocarro capotou metros adiante. Garagem, pois sim. Agora sim, há um motivo para transportar tal carcaça para a garagem...ou melhor dizendo, para um ferro velho.

Como os gritos dos meliantes e o estrondo do acidente houvesse chamado a atenção de sonolentos moradores do bairro, ele decidiu se dirigir calmamente e a pé, para outro local onde houvesse maior abundância de transportes. Àquela hora da madrugada, era absolutamente normal que, algumas centenas de metros adiante, outro grupo de pretensiosos assaltantes mequetrefes tentassem lhe roubar algo.

Ao se afastar dos corpos, o Noiado pensou em como naquele dia os jornalecos vendidos a um quarto de Real iriam ter o que falar. Talvez tivessem de publicar uma edição dupla relatando todo aquele sangue que no chão por onde ele pisava havia. A caminhada era longa, mas foi deveras agradável para aquela deturpada mente, aquele agente do caos, estranho ser de louras barbas que havia se tornado um autêntico anjo da morte. Ou apenas um demônio desbotado. Seres humanos mau humorados lhe empurravam, "Acorda ô gringo inútil. Sai do caminho." Pop.

Pop, lá se foi o agente da BHTRANS, BHTRASH, que multava carros em uma rua deserta àquela hora da manhã. Pessoas gritando em seus ouvidos? Pop, pop, pop. Silêncio. Cansado de tanto andar, resolveu pegar um ônibus, tentando ignorar o olhar horrorizado que certos transeuntes lhe deitavam, devia ser todo aquele sangue que nele respingara. Olhe mais um bocado, por favor. Um débil grito, outro corpo estendido ao chão.

Segurou seu poder ao máximo quando embarcou no coletivo. Ignorou todos os olhares e se sentou ao fundo. A maioria daqueles "mortais," entretanto, agia conforme o figurino humano manda, conforme impera a lei da conservação de suas próprias vidas. Desviavam o olhar. Não é comigo. Vou ficar na minha. O Noiado nem sequer se importou. Estava acostumado. Quando transitava pelos coletivos, mesmo antes do malévolo poder nele existir, sentia tal coisa na pele. Jamais se sentavam a seu lado nos ônibus, ainda mais se estava em dias de extrema fúria e trajando camisetas sem mangas. Todos tinham receio ou asco daquele alemão nazista tatuado e mau encarado que ali estava. Todos o viam como um ser alienígena. Riu mentalmente de tal constatação.

Chegou em seu emprego, e foi direto para a sala de certo alguém, que havia meses antes, lhe puxado o tapete diante da possibilidade de que, porventura, o Noiado subisse de posição e viesse ameaçar os planos de tomar o poder naquela merda. Nem precisou entrar na sala. Uns vinte metros antes de chegar defronte à mesa da criatura, escutou o surdo barulho de entranhas estourando e sangue jorrando por todos os lados. Hmmm. Merda, pensou ele, queria ter visto.

Foi para sua sala. Sentiu apertar a vontade de ir ao banheiro, e lá entrou. Ao fechar e trancar a porta atrás de si, aconteceu algo que não esperava.

O espelho.

Ao contemplar casualmente sua imagem naquele artefato reflectivo, sentiu o chão lhe faltar. Espelhos não mentem. E a imagem ali existente dizia tudo. Ali estava o mais odioso dos seres, aquele que havia se libertado de todas suas amarras, deixado cair a máscara infame de "bonzinho", e que, tomado de assalto pelo nefasto poder que por algum motivo havia sido lhe ofertado, havia se tornado, de fato, o que sempre existira por debaixo de toda aquela falácia de bom moço. Um ser perverso, maldoso, o cão, por assim dizer. Tudo que nele havia de humano, ou melhor dizendo, que ele afirmava debilmente e mentirosamente ser seus "valores mais dignos", sua falsa natureza de "paladino da justiça, do moral e dos bons costumes", tudo isto...havia sido revelado como sendo a maior mentira que uma pessoa poderia contar.

Era um monstro como todos os outros, mesmo pior que todos os outros, matara sem sequer se importar com as consequências. Impunimente, injustamente, tamanha era a desproporção de seus atos e dos "crimes" que suas vítimas eram culpadas. Se é que eram culpadas.

Olhou em seus próprios olhos refletidos e pensou.

Pop.

Foi a última morte por aquele monstro causada.