Sou conhecido por ser um inimigo atroz dos anos 80 e da grande maioria das coisas que dali surgiram. Não irei discutir tais coisas no capítulo de hoje, entretanto, mas antes, gostaria de discorrer sobre uma personalidade que despontou naqueles nefastos anos: Laerte Coutinho.
Laerte é um paradigma nacional e internacional em se tratando de quadrinhos. Desde moleque, lembro-me de já apreciar suas tiras em alguns jornais que por aí circulavam, sem nem ao menos entender direito algumas delas. Mas sempre apreciei seu desenho, exuberante e fluido, extremamente detalhado e bem-trabalhado, com linhas fortes e contrastes marcantes. Anos mais tarde, quando tive acesso a outro tipo de publicações saudosas daquela década quase inteiramente perdida - as revistas Chiclete com Banana, Circo e quejandos - foi que realmente tive contato com a obra deste genial cartunista, e com outros grandes nomes do humor desenhado de nosso país, tais como Glauco e Angeli, que são outros psicopatas do gênero, ao menos em termos de produtividade. O desenho deles não se iguala ao de Laerte, em minha opinião. Mas isto não vem ao caso.
Nestas revistas, tive acesso a outro tipo de história escrita e desenhada pelo cara. Histórias de maior porte, não necessariamente envolvendo personagens típicos de seu universo particular, como os Piratas do Tietê ou o pessoal do Condomínio. Geralmente tais histórias eram dotadas de um humor espetacular, repleto de meu tão-amado nonsense, e extremamente ricos em suas exuberantes imagens. Me diverti horrores lendo a coleção de revistas de alguns amigos meus, e sou orgulhoso de ainda possuir volumes originais publicados naqueles nefastos anos.
Muito tempo se passou, e neste ano, fui surpreendido ao encontrar um livro de bolso da L&PM contendo uma seleção de tiras de Laerte, mais especificamente dos Piratas do Tietê, aqueles corsários paulistanos, que tanto incomodam a todos. Eu fiquei rindo sem parar por uns dez minutos de uma simples tira daquele volume, e ri muito de outras. Sempre me deleitando com a qualidade gráfica das tiras. um tempo depois, soube que estavam publicando, em três volumes, uma coletânea de histórias dos Piratas, como a exibida na imagem acima, que se trata do segundo volume da série. Confesso que quando comprei o primeiro volume, fiquei ligeiramente desapontado, pois acreditava que seria a coletânea completa das tiras. Não era o caso; eram republicações daquelas histórias de maior porte, como as publicadas na Chiclete com Banana e Circo. Mesmo assim, foi interessante conhecer a história que deu origem aos Piratas e outras informações sobre o criador.
Semana passada, adquiri o segundo volume da série. Me propus mesmo a adquirir os três volumes, mesmo preferindo que fosse uma coletânea integral das tiras. Mais tarde, pensei que tal tarefa iria demandar uma edição bem mais polpuda e cara que aqueles três volumes, dada a psicopatia de Laerte, que deve ter muito mais que 10 mil tiras publicadas. Sei lá. O cara realmente é um psicótico, um exemplo de produtividade. Mas enfim, comprei o segundo volume, e ele é muito melhor que o primeiro. Existem histórias ali que realmente tirei o chapéu para o cara, como a adesão de Batman aos Piratas, o embate entre o Capitão e Fantasma, e...a obra prima de Laerte: a história entre o encontro fictício entre os Piratas e...Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa, é outro gênio, outra figura a quem tenho muita, mas muita admiração mesmo. É, em minha opinião, o melhor poeta da língua portuguesa que já existiu. Não somente por ele ter produzido sínteses de minha essência como ser humano em poesia - daqueles tipícos exemplos que costumo citar aqui, quando outras pessoas expressam em suas obras a forma que você se sente(acontece muito comigo); o caso é que Fenrando Pessoa levou a cabo uma de minhas maiores ambições enquanto "cara criativo": a de nunca, nunca se deixar abalar e sempre produzir, não importa forma que o humor está se manifestando no dia X ou Y.
É sabido que ele tinha uma porção de heterônimos, cada qual com sua produção independente, cada qual com sua voz e temperamento, indo da mais absoluta descrença com a vida até o excitamento ateu diante da vida maravilhosa que se desenrolava diante de seus olhos. . É como se ele fosse um esquizofrênico sob controle, com um bilhão de vozes em sua cabeça. Teorizo que conforme sua disposição no dia X ou Y, ele assumia uma de suas identidades e produzia e produzia e produzia. Não tinha uma destas imensas frescuras típicas de "artistas" por aí, de ficar choramingando pelos cantos por estar tendo um mal dia e usar isso como desculpa para não fazer nada. Eu levanto a mão. Presente. Sou assim muitas vezes e detesto. E se quer saber como Marcos, o Buriol se sente em dias de mais hedionda depressão, leia o poema Tabacaria, do heterônimo Álvaro de Campos. É exatamente daquele jeito ali descrito que me sinto em momentos de extremo desespero.
Sim, é bravo. E extenso, eheheh. E por mais reduntande que possa soar, é no mínimo 95% acurado.
Diziam que ele chegava mesmo a enviar cartas de um heterônimo para outro, discutindo temas relacionados à produção poética de cada um. É preciso ser muito louco para ser assim, em minha opinião. Ainda mais em uma época que mesmo uma máquina de escrever era um luxo destinado a poucos. Era tudo, tudo, escrito à mão. E a obra do cara é imensa, extensa, intimadora até. Dizem mesmo que um dos maiores desafios para os estudiosos de sua obra é decifrar seus manuscritos. Eu mesmo vi alguns trechos reproduzidos em um de seus livros, e posso afirmar que passa perto do sânscrito, da linguagem cuneiforme, do aramaico arcaico ou coisas assim.
Foi uma agradável surpresa ao verificar que Laerte é admirador de Fernando Pessoa. A história que narra o suposto encontro entre os piratas, com toda sua truculência e ignorância, e Fenrando Pessoa, com toda sua extensa paleta de emoções em forma de poesia, é algo antólogico. Surpreendente e fundamental. Extremamente agradável aos olhos e à mente. E da forma que vejo, o encontro não poderia ser melhor descrito. A cada página, eu me deleitava mais e mais.
Recomendo. Se quiser se divertir e conhecer o trabalho de dois gênios, adquira seu volume da obra de Laerte sobre os Piratas do Tietê. É algo de fato muito, mas muito surpreendente. E de qualidade. Atesto, assino em baixo. Compre sem medo de ser feliz.
Bem, tornemos ao mundo real. Que personalidade incorporarei hoje? Provavelmente a minha mesma, a de sempre. Não basta querer ser uma coisa, é preciso poder ser uma coisa, ainda que muito admiremos uma pessoa, somos o que somos, não é isso?
Infelizmente. Eheheheheh.