segunda-feira, 6 de abril de 2009

Segunda parte.

A princípio, tudo correu bem. No primeiro dia, fui até a cidade com meu carro velho para comprar algumas coisinhas. Pensando a respeito de toda a situação, tudo me pareceu bem conveniente. Até agradável. Desde que perdi meu emprego, não tive muito tempo para pensar em nada muito criativo; para falar a verdade, nem tinha tido o dito estado de espírito necessário para se escrever.

Pelo menos agora, as coisas estavam voltadas a meu favor: tinha um local isolado de tudo e todos para tentar voltar a trabalhar. Eu só teria que de vez em quando parar para tirar a poeira daquela casa.

Ou pelo menos assim eu achava.

Comprei meu estoque de víveres para a temporada ali. O básico, o essencial para me manter ativo e bem nutrido por todo aquele tempo:
-48 latas de cerveja,
-1 garrafa de rum,
-1 garrafa de vodka,
-20 pacotes de miojo, outro tanto de sopas instantâneas diversas,
-5 salaminhos,
-1 pacote de maços de cigarros,
-4 potes de sorvete de creme,
-2 vidros de Excedrin.

O básico para a sobrevivência. Ou como diria a vaca da minha ex-mulher, o básico para uma ressaca prolongada, por dias e dias. Que culpa tenho eu se meu processo criativo dependia de todos aqueles fatores conjugados?

Que culpa tenho eu de isso ter levado aquela meretriz a me odiar, a querer meu sangue?

Ha, ha, ha. Pelo menos eu tinha alguém a quem caçoar por ali, pensava enquanto bebia as primeiras cervejas. Minha primeira noita ali deveria ser memorável. Comemoremos a nova vida. Caseiro. E por que não um caseiro escritor? Comemoremos a nova casa, o novo quarto, a nova vida. Um brinde. A toda este vazio dentro desta casa. A todo o vazio dentro de mim, preenchível por álcool.

Obedeci as normas da casa por um período recorde. Bastou a única figura de autoridade sair dali para que eu violasse todas elas de uma vez. Um brinde a isso. A meu novo recorde. Bebericando a cerveja, arrumei meus suprimentos pela cozinha, dentro da geladeira. Preparei meu jantar, miojo de carne com salsichas. Suntuoso jantar, aquele. O alimento dos campeões. Ha, ha, ha.

Porque será que minha ex não tinha senso de humor? Era tão fácil achar o lado positivo das coisas. O que eu precisava para ser funcional? O que eu precisava para ser feliz? Apenas uma pequena dose de coisas baratas, álcool, cigarros, comida. Comida barata é realmente barata. Um brinde a esta conclusão brilhante. Minha lista é simples e ideal. Bem compatível com minha vida, com meu salário, com minha casa. Com esta casa que é minha enquanto o almofadinha estiver curtindo a vida de seus milhares de dinheiros.

Bebendo a quinta ou décima cerveja, eu concluí que talvez fosse necessário acrescentar uma dose de sexo à minha lista de coisas vitais para minha sobrevivência. Foi aí que pensei que talvez aquele bolha tivesse canais pornôs em sua televisão. Bebendo mais uma cerveja, fui verificar se aquilo era verdade.

Saí da cozinha xingando a porra da porta que tinha ficado mais estreita, e com uma maçaneta traiçoeira, que me acertou em cheio no cotovelo. Xinguei a mãe da porta e caminhei até o hall principal da casa, não me lembrando do caminho ser tão tortuoso daquela forma. Nem tão longo. Nem tão cheio de obstáculos.

Subi os degraus da escada, que pareciam ter se reproduzido enquanto não estava olhando. Ah, safados. Mesmo os degraus têm uma vida sexual mais ativa que a minha, ha, ha ha. Um brinde a este fato inútil. E os móveis todos resolveram bloquear meu caminho. Um chute nesta cadeira. Um pontapé nesta mesa de centro. Um empurrão nesta...nesta...coisa que me atrapalha a passar, seja lá qual for o nome disto.

Onde mesmo ficava aquele quarto?

Bebendo mais alguns goles, decidi que se estivesse de fato perdido naquela casa, seria hora de parar de beber…Pelo menos por hora. De qualquer maneira, minha lata se encontrava irremediavelmente vazia. Deixei ela cair ao chão, ali mesmo onde estava, na entrada de um corredor. Mais tarde eu voltaria para apanhar.

Não me lembrava daquele corredor ali. Parecia não ter fim. Quantas portas, todas fechadas. E que papel de parede mais feio. Vermelho. Andei e andei, e não chegava ao fim daquela joça. Minha cabeça estava tão confusa no momento, concluí que realmente deveria ter passado da conta. Talvez fosse hora de tomar um excedrin para evitar a ressaca que iria ter que enfrentar mais tarde. Meu estômago concluiu que seria melhor também encontrar um banheiro em breve.

Meia volta, senhor caseiro. Senhor escritor caseiro. Ou será que seria caseiro escritor?

Passos e passos. Saco de corredor, não acaba nunca. Portas e mais portas passavam aos meus olhos, minha vista um tanto embaçada. Tentei me lembrar afinal quantas cervejas havia bebido, mas nunca fui muito bom em contas daquela magnitude. Números complexos. Ha, ha, ha. Eu brindaria a isto, mas estava sem cerveja. Lembrei-me de apanhar a lata que havia deixado no início do corredor.

Mas onde estava o início daquela merda?

Caminhei e caminhei, o treco não acabava nunca. Quanto você precisa beber para que as distâncias fiquem multiplicadas por um milhão? De fato, devo ter passado da conta. Portas e mais portas. Olhei para a frente. Não conseguia ver o início do corredor...aquilo realmente parecia não ter fim. Olhei para trás.

Sacudi minha cabeça, que continuou a girar. Aquilo realmente não tinha pé nem cabeça, princípio nem fim. O corredor se estendia em ambas as direções até a infinidade. Não era possível ver o fim nem o início.

Que merda era aquela?

Tentei abrir a porta à minha frente. Trancada. A próxima, também. E a outra. O que diabos estava acontecendo? Continuei a andar, não havia mais nada a fazer, ao menos me parecia. Que merda de casa idiota, e que idiota eu era, beber tanto assim na minha primeira noite ali. Andei e andei, até começar a me sentir meio mal, de verdade. Quem não sabe beber não deveria nem começar a fazê-lo, era uma das frases preferidas de minha ex. Podia até ouvir sua voz me dizendo aquela baboseira.

Na verdade, eu podia ouvir outra coisa. Um rumor estranho, uma voz...atrás de mim? Olhei para o outro lado do corredor. Apenas a infinidade de portas se estendendo até onde podia ver. E...um par de pontos vermelhos, na escuridão. Vindo em minha direção. E o rumor constante de algo...algo fazendo um som estranho, inumano.

Não sei em que momento minhas pernas tomaram a resolução de correr, mas foi o que fiz. O rumor continuava atrás de mim. Não me atrevia a voltar minha cabeça para ver se o par de pupilas vermelhas continuava atrás de mim. Corri e corri, meu coração a mil por hora, minhas pernas tentando quebrar alguma espécie de recorde, creio eu.

Portas e mais portas passavam ao meu redor, mas não conseguia ver o fim daquele maldito corredor. O rumor, no entanto, parecia ficar cada vez mais perto de meus ouvidos. Senti um arrepio na espinha, e senti um vento frio, gélido como a morte, a passar por mim. Minhas pernas começavam a falhar, meus pulmões não conseguiam apanhar ar o suficiente para me manter em marcha acelerada. Minha cabeça parecia que iria explodir, meu peito ofegava como nunca.

E o som se aproximava. Cada vez mais.

Não olhe para trás, era tudo que eu conseguia pensar. Mas ao mesmo tempo que nosso lado racional sempre se esforça para manter as coisas em ordem, sempre somos providos de alguma porção idiota. Voltei minha cabeça para ver...algo que não consigo me lembrar. Algo sem nome, sem denominação.

Algo que me rasgou no meio, algo que me fez em pedaços. Senti a dor de garras passando pela minha carne. Senti tendões se esticando e arrebentando. Tudo que eu vi foi sangue. Sangue, ou o papel de parede vermelho. Vermelho como aquelas pupilas. E o corredor, que se enegrecia mais e mais. Vermelho e negro. Negro e vermelho.

Acordei com sobressalto. Estava na cozinha, ofegante. Continuava a escutar um rumor monocórdio, mas agora, somado à minha dor de cabeça, era apenas o tom uniforme do alarme de fumaça no teto. A panela com meu miojo estava enegrecida, esquecida no fogão.

Ha, ha, ha. Um sonho, um pesadelo.

Apaguei o fogo, olhei o resto carbonizado do que seria meu lauto jantar. Ri um tanto histericamente de mim mesmo, e apanhei uma cerveja na geladeira para brindar o fato que eu ainda estava vivo e que a casa não havia decidido me comer vivo.

Cautelosamente, andei até a escada, subi os degraus e achei facilmente meu quarto. Olhei ao redor e não vi nada de mais. Brindei a isto, e sem querer saber de mais nada, resolvi me jogar na cama e encerrar aquele dia. Antes, fui ao banheiro para me aliviar, afinal de contas, toda aquela cerveja queria sair de mim, ou pelo menos parte dela.

Ao me dirigir para a porta do banheiro, tropecei em algo. Uma lata de cerveja.

Sem olhar no espelho, fiz o que precisava ser feito e saí dali o mais rápido possível, me enfiando na cama e me cobrindo todo até os olhos.