Acordou dentro da xícara de café. Diante dele, mui tranquila, fumegante. Gole após gole, devolveu-lhe a vida que lhe fora tirada pela noite. Pelas noites. Noites e dias, tantas horas, tantas coisas. Nas ruas, poucas pessoas haviam a esta hora. Felizmente, café havia, em alguns noturnos estabelecimentos, que aos poucos despertavam, atendentes bocejantes e olhares remelentos. Noites mal dormidas, madrugadas despertas, há que se ganhar o pão nosso de cada dia. Cada dia. Cada vez mais, tudo era dia, dia após dia, noite após noite, as luzes significavam-lhe cada vez menos diferencial entre noturnos da madrugada e matutinas putas, cambaleantes pelas calçadas anônimas.
Lembrou-se de antigos romances, antigas narrativas, descrevendo tipos como ele, insones, perambulantes, calados. Tipos solitários, anônimos filósofos da noite e de toda sua extensão, das pessoas e todo seu negro lado, sua escondida existência. Ninguém saberia que o vizinho era uma vizinha nas horas vagas. Ninguém saberia que o estudante de medicina gostava de frequentar a zona baixa do mais baixo escalão das profissionais do sexo, a estudar venéreas contaminações, estranhas penetrações, bizarros afazeres de uma mente repleta de insanidade. Tanta gente morta, tanta gente moribunda. Não que merecessem compaixão: não, ele as detestava. Mas fascinava-se de vê-las se acabarem por seus excessos noturnos.
Ninguém estava vendo. Ninguém além dele.
Gritos abafados na madrugada, ele havia escutado. Não se aproximava, não se importava. Não queria se importar, não mais. Quem eram eles, elas? Ninguém, assim como ele era para eles, elas. Ninguém.
Ninguém.
Café, doce café. Amargo em natureza, adocicado por mera presença açucarada. O dia começava, para todos. Não para ele. Para ele, os dias nunca começavam, nunca terminavam. Meses a fio, noites adentro. Diziam-lhe muitas coisas, deveria se exercitar à noite. Não, pela manhã. Não, ao meio-dia. Não deveria se estressar. Deveria tomar banhos quentes. Frios. Ler livros difíceis de ler. Coisas amenas à cabeceira da cama.
À cabeceira da cama...existia o mundo. Nada leve, nada ameno, ao meio-dia, à madrugada, ao nascer do sol. Cinza sendo azul, negro como a alma dos homens. Credo, diziam, e se afastavam. Todos se afastavam. Todos se afastaram. Todos fizeram pouco caso, não é possível que exista alguém tão mal-humorado; egoísta! deveria pensar em quem está mal de verdade. Câncer. AIDS. Exames vestibulares, estupros. Não.
Dele não se lembravam. Só para menearem a cabeça. Não se lembraria deles também. Não mais.
No fundo da xícara, negro pó encharcado, prejudicando o aroma do café. Não seria necessário sorver aquele último gole. Só precisava de pagar ao bocejo operador da máquina registradora. Olhos vermelhos. Noite mal dormida, cá está um irmão, ainda que seja longe disto.
Muito longe disto.
Moedas, nota surrada. Obrigado, até amanhã. Sim. Para você também.
Lembrou-se de antigos romances, antigas narrativas, descrevendo tipos como ele, insones, perambulantes, calados. Tipos solitários, anônimos filósofos da noite e de toda sua extensão, das pessoas e todo seu negro lado, sua escondida existência. Ninguém saberia que o vizinho era uma vizinha nas horas vagas. Ninguém saberia que o estudante de medicina gostava de frequentar a zona baixa do mais baixo escalão das profissionais do sexo, a estudar venéreas contaminações, estranhas penetrações, bizarros afazeres de uma mente repleta de insanidade. Tanta gente morta, tanta gente moribunda. Não que merecessem compaixão: não, ele as detestava. Mas fascinava-se de vê-las se acabarem por seus excessos noturnos.
Ninguém estava vendo. Ninguém além dele.
Gritos abafados na madrugada, ele havia escutado. Não se aproximava, não se importava. Não queria se importar, não mais. Quem eram eles, elas? Ninguém, assim como ele era para eles, elas. Ninguém.
Ninguém.
Café, doce café. Amargo em natureza, adocicado por mera presença açucarada. O dia começava, para todos. Não para ele. Para ele, os dias nunca começavam, nunca terminavam. Meses a fio, noites adentro. Diziam-lhe muitas coisas, deveria se exercitar à noite. Não, pela manhã. Não, ao meio-dia. Não deveria se estressar. Deveria tomar banhos quentes. Frios. Ler livros difíceis de ler. Coisas amenas à cabeceira da cama.
À cabeceira da cama...existia o mundo. Nada leve, nada ameno, ao meio-dia, à madrugada, ao nascer do sol. Cinza sendo azul, negro como a alma dos homens. Credo, diziam, e se afastavam. Todos se afastavam. Todos se afastaram. Todos fizeram pouco caso, não é possível que exista alguém tão mal-humorado; egoísta! deveria pensar em quem está mal de verdade. Câncer. AIDS. Exames vestibulares, estupros. Não.
Dele não se lembravam. Só para menearem a cabeça. Não se lembraria deles também. Não mais.
No fundo da xícara, negro pó encharcado, prejudicando o aroma do café. Não seria necessário sorver aquele último gole. Só precisava de pagar ao bocejo operador da máquina registradora. Olhos vermelhos. Noite mal dormida, cá está um irmão, ainda que seja longe disto.
Muito longe disto.
Moedas, nota surrada. Obrigado, até amanhã. Sim. Para você também.