O que resta, depois da morte?
O que resta é quase nada, em especial quando a pessoa que morreu era alguém como ela, rico de espírito, pobre de dinheiros. Assisti a tudo calado, oferecendo com consternação e gravidade as condolências a todos os seus familiares. Anestesiado. Atordoado. Não sei. Não conseguia dizer quase nada além das inócuas sentenças típicas que constam em momentos como este.
Não me aproximei do esquife, entretanto. Desde que ouvi a notícia, desde que foi selada a sentença, minha última decisão consciente foi a de não ver a face sem vida, o corpo sem sentido, o ponto final. Ao menos isso eu devia a ela, não a ver depois que a vida ali deixasse de existir.
E o que mais existia agora?
Uma parte de mim caiu na gargalhada. Uma parte de mim sempre foi sarcástica e cruel. Mas ela estava longe de estar errada. Uma vida inteira, uma existência inteira, sabendo bem o que eu queria, o que eu deveria ter feito, o que deveria eu fazer.
Não fiz nada. Agora ali estava eu, trajando preto em uma terça feira à tarde. Anos, tantos anos depois de chegar a conclusão que eu sabia o que eu queria. Mas nada foi feito. Nada mudou.
Não soube, nem nunca saberei se ela também sabia. Se era algo além de simples desconfiança de minha parte, ou se era algo mais sério...será?
Nunca saberei. Não agora.
As pessoas continuavam a ir e vir, e eu continuava ali, em pé, absolutamente sozinho no meio de todas aquelas pessoas. Absolutamente sozinho, mesmo estando apenas a alguns passos dela. Mas não era mais ela que estava ali deitada em um ataúde. Era uma sombra do que havia sido.
Meus olhos subitamente me trairam e se voltaram para a direção dela, mas eu consegui afastá-los antes que vislumbrasse algo além das hécticas flores e do véu que cobria tudo.
Desde que eu soube, meus olhos se mantiveram secos, em um estranho estado de estupefação, creio eu. Tudo que havia em mim de esperança havia sido atirado ao chão, e seria enterrado juntamente com aquele corpo que ali estava deitado e inerte.
Se ela ali estivesse, ela estaria me enervando, "Seu fatalista, fatalista, pare com isso"
Fatalista? Longe de ser outra realidade, ainda mais agora. Quantas vezes na minha vida, em minha patética vida eu temi aquele momento, ainda mais ao longo de tantos arrastados anos que estive aqui neste mundo. Poucas foram as pessoas que obtiveram algum lugar tão especial em minha alma quanto aquela que ali estava sem estar. E agora...
Não sei. Não saberei.
Com ela quis estar, com ela queria eu trocar de lugar. E eu procederia, com sorrisos à mostra, com serenidade na mente. Mas não era possível barganhar tal coisa.
Me voltei para vislumbrar uma de suas irmãs, aos prantos perto do caixão. Nunca as conheci muito bem, as irmãs. Não sei se quem se aproximou ternamente dela e a afastou da visão da morte era seu marido, ou apenas alguém. Não sei.
Muitos minutos se passaram depois desta cena, a última que me lembro antes de ver algo se aproximando, algo rangendo. As rodinhas daquela coisa em que põem caixões por cima para transportá-los ao túmulo. Pude ouvir alguns choros se intensificando quando a coisa chegou. Vi homens desconhecidos tampando a última morada dela e a pondo por cima de tal carrinho.
Dentro de mim crescia algo, mas era além da dor. Era um grito. Eu podia sentir ele ecoando por dentro de todo o meu vazio. De toda minha obsolescência, minha covardia. Algo que não podia ser ignorado.
Neste momento, eu comecei a sentir as águas crescendo. Impróprio momento, evidentemente. Tentei me afastar mas minhas pernas não obedeceram, e eu fiquei ali plantado. Todo meu corpo se paralisou. O fúnebre cortejo começou a seguir as rangentes rodas, mas eu não fui. Não pude. Não conseguia me mover. Eu sentia as tórridas águas caindo em minhas roupas, mas eu não conseguia fazer mais nada além disso.
Eu estava sozinho, eu estava completamente sozinho.
Toda a minha inutilidade caiu sobre mim como chumbo, e eu dei alguns passos para trás. Senti uma parede, e me deixei escorrer para o chão, enterrando minha cara nos joelhos. O ranger era cada vez mais distante, mas eu não conseguia fazer nada além de ali ficar, inútil, inútil.
Mais nada havia ali. Nada.
Não mais ouvia o rangido, mas eu conseguia ovir o grito dentro de mim.
O que mais poderia eu fazer agora?