quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Muderno.

O cara levantou-se, olhou ao redor, e disse, desconsolado, "Acordar por vezes é uma perfeita agressão." Levantou-se penosamente e dirigiu-se para o banheiro, a fim de fazer as devidas abluções matinais. Em seu camiho, tombaram mortas diversas bactérias, alguns vírus e mesmo alguns paramécios, que ali se encontravam devorando um alface.

No banheiro, a cara com que se olhou no espelho não a dele se parecia; quem seria aquele estranho no espelho? Sydney Sheldon? Não sabia, e nunca havia lido; tampouco se importava. A manhã apenas principiava-se e era necessário trabalhar, sem muito pestanejar. Lavou-se, secou-se, higienizou-se e partiu, dali para a cozinha. Havia que cear o pequeno-almoço da manhã que se iniciava, o pequeno-sanduíche de queijo com presunto e abobóras. Um pouco de salada iria bem também. Que tal um pouco de pernil? Leite de iaque? Não, um tanto indigesto. Talvez um pedaço de queijo de cabra. Gelatinas! Sorvete de ovo, de ovo. Coco com castanhas do paraná? Por que não.

Lauto havia sido seu manjar de imaginação, ainda que houvesse muitos grãos de café que ali estivessem a circular pela vazia lata, muito havia o que se fazer. Avante, para o estacionamento de limusines. Não, não se interessaria pelo modelo mais estendido, aquilo lembrava-lhe bem um rabecão, e não era ainda chegada a hora de tais fúnebres execuções. O dia não havia dado em chuvoso, e a previsão da imprevictabilidade anunciava um dia de sol, glorioso sol, para os bem-aventurados dotados de tetos e mais-valia; portanto, a lógica não poderia escusar-lhe de escolher o veículo mais adequado, o mais óbvio, uma verdadeira máquina, possante como uns dez carros emparelhados, dotada de mais cavalos que um haras da mesopotâmia, em seus dias mais ricos de espírito: a Mercedes, esta azul.

Saltou do autocarro praticamente em movimento. Gostava de emoções, de diversões, de fazer suas agruras aventuras, de sua vida um parque de diversões, ainda que o único divertimento de todos ao seu redor era embarafustar-se em vidas alheias, em mundos alheios, em locais alhures, mesmo que dali não saíssem. Através de fios e cabos, conexões e interligações, todas elas se encontravam, sem nem ao menos levantar um dedo além de seus aparatos de imposição perante as máquinas, negras máquinas, algumas ainda ostentando tons de creme, envelhecidos pela época antes da revolução da conectividade.

Ele se refuguiou em sua sala, mas não ligou o aparato negro a ele destinado. Não acionou os controles da máquina de calcular gigante. Não se conectou no mundo. Trancou a porta de sua sala, arrancou o fio do telefone. ALi estava, mas ninguém lhe encontraria, eis que atados às máquinas estavam todos, e às máquinas estavam atreladas o peso do mundo, toda a informação da humanidade.

Menos aquela. Aonde estava o cara, que não havia entrado em nosso mundo, em nossa vida de elétrons, cabos e conexões? Modems, fax-modems, Gooooooooogles e Micro$ofts, nada o encontraria caso ele se recusasse a ali entrar, a ali permanecer, a ali ficar. E ele não entrou. Por todo o dia, não entrou. Não o encontraram. Não conseguiam o encontrar. Todas as buscas eram infrutíferas, não importava se o "feeling lucky" estivesse ligado ou não.

Ninguém o encontrou naquele dia. Nem precisava do telefone ter se desfeito, pois ninguém nem mais sabia o que era comunicação além do VoIP, além do MSN, além do orkut, além do que quer que fosse.

Ali ele não estava. Em um livro, em um livro aerto havia entrado ele assim que ali chegara, e dali não pretendia sair. Ele mesmo não saberia dizer por quê havia tomado tal decisão. Talvez fosse por não pertencer àquele mundo, talvez fosse por não aceitar aquele mundo, talvez fosse por estar farto de estar perto de todos mesmo estando longe.

Não o acharam.

Dali saiu, horas antes do término, antes mesmo que o pregão fechasse as portas, isentas de pessoas, por ali elas não estarem. Em ruas desertas ele circulou, em busca de algo, mas não encontrou pessoas; todas elas, por mais miseráveis que fossem, ali não estavam. Em seus lares, enfrentavam dragões, conversavam sobre a vida alheia de habitantes de Timbuctu, aqueciam seus eróticos motores em representações virtuais de imagens que nunca existiram, de pessoas que nunca foram da maneira que ali estavam representadas. Nada mais importava, nada mais existia. Não de fato. Não ali, nem aqui.

A vida havia se tornado inválida. Havia se tornado incorreta, estranha, triangular, obtusa, pontiaguda. Não haviam mais pessoas, mas sim avatares. Não existiam nomes, mas nicks.

Em um mundo sem ninguém, ele havia se tornado um raro espécime, ao se dirigir para o conteúdo real, não maquiado, não inventado, não fotochoppado do mundo em si. Águas que realmente molhavam, gramas que realmente se moviam com o vento, aquela força invisível que passava pelo seu rosto.

Olhou para trás, mas sem remorso. Não se tornou um pilar de sal nem nada. Não havia mais força que pudesse com ele realizar tal proeza, tal milagre, tal mau-contada verdade.

Não o acharam. Não havia o que se achar. Não havia onde encontrar, uma vez que dali não mais sairiam, não mais tentariam sair.

Não o acharam.

E se procurassem, o que encontrariam?

Ele havia deixado de existir, a partir daquele momento.