segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Dezanove.

Tensionei meu corpo todo, esperando o ataque. Apertei o cano com toda força.

Ela só me "olhava" com aquele ponto de luz na testa e arfava. Mas não agia. Os segundos passavam lentamente, aumentando ainda mais minha tensão, minha antecipação.

E eu não estava com muita paciência. Foda-se.

CLANG!

Vamos pôr um pouco de pimenta neste caldo, um lado de minha cabeça pensou, enquanto o outro lado replicava imediatamente, puta merda, prepare-se para a merda que vai vir.

Foda-se, foda-se. Eu já estou fudido mesmo, disse para as vozes de minha cabeça.

A mulé do demo cambaleou com a porrada nas fuças, deu uns dois passos para trás e ali ficou alguns instantes. Porra. E eu achando que no mínimo iria ter uma reação mais raivosa da dita. Deve ser o elemento surpresa, pensei eu. Ela vai se virar daqui a pouco e...

E nada. Ela ficou ali, rosto virado, ofegante ainda, mas sem nem esboçar nenhuma reação. E os segundos escoavam lentamente, lentamente. Saco.

De repente, o ofegar dela se tornou mais imperceptível a ponto de sumir por completo. Foi aí que notei que além dos sons emitidos por nossas respirações, não havia mais nada. Silêncio absoluto.

Eu continuava tenso, esperando alguma sorte de reação qualquer, segurando meu fôlego. De fato, daria para se escutar o barulho de uma agulha caindo no chão, tal era o silêncio absoluto. Mas...

Um outro som fez-se audível após alguns segundos, entretanto.

Choro?

Aquela...coisa...estava chorando?

Sim, após mais alguns eternos instantes, o som era definitivamente classificável como "choro", pela definição auditiva humana clássica. E agora, até os movimentos convulsivos típicos do ato de chorar eram visíveis naquela coisa.

Confesso que fiquei desarmado por alguns instantes. Por mais que aquilo fosse algo bem distante, fisicamente falando ao menos, do modelo ideal de uma fêmea, longe mesmo de ser humana, ainda assim aquilo me perturbou. Destravei meus braços um pouco para olhar.

Ledo engano. Erro primário.

Houve um flash, um impacto, algo que não pude entender, mas que havia acontecido muito rapidamente. Fiquei confuso por alguns segundos, até sentir a dor. E sentir o melado descendo pelo meu pescoço. Notei também que não conseguia respirar quase nada.

O que havia acontecido é que a coisa havia feito aquele teatrinho para me enganar, e havia conseguido o que queria. Aproveitando-se de meu momentâneo lapso, ela havia me agarrado pelo pescoço com o braço menos podre, e me levantara do chão. Num reflexo natural, mas não menos fatal para mim, eu havia soltado o cano e agarrado com as duas mãos o braço que me suspendia no ar. Que beleza. Havia perdido minha única arma.

Ela havia me agarrado de jeito, entretanto. E com vontade. Eu conseguia sentir as unhas podres daquela criatura cravadas em minha carne....

As coisas iam ficando pretas, literalmente. Já começava a sentir a falta de ar me drenando as forças. Eu olhei com meus bugalhos para a cara dela, no mais profundo desespero que a situação me trazia. Ela estava se divertindo horrores. Senti mais uma dor quase insuportável se irradiando de meu pescoço para todo meu corpo. Algo que nunca havia sentido antes, uma dor sem parâmetros.

Era inútil. Eu havia perdido, eu sabia disso. Mais uma vez, você se ferrou. Nunca aprende mesmo, hein seu imbecil.

Desta vez, não foi minha voz de pensamento, mas outra. Outra voz, completamente e stranha para mim, mas...estranhamente familiar, ao mesmo tempo. Eu esperava que desta vez você não fosse cair no truque do choro. Pelo visto achei seu ponto fraco mesmo. Cretino.

Eu adoro ver como você se contorce. Senti mais uma agonia estranha, sem definição humana, enquanto a criatura dilacerava meus tendões, minha cartilagem da traquéia. Eu não conseguia desligar. Porquê eu não conseguia desligar? Por que eu não desmaiava ou morria de vez?

Mesmo sendo previsível com este seu ponto fraco, você é ainda de meus preferidos. Vamos tentar novamente ver se você aprende algum truque novo? Gostei muito do jeito que você tentou me distrair se valendo de minha vaidade naquela hora dentro do box. Você é promissor.

Minha vista, minha audição, tudo se deformava, tudo perdia o sentido, só havia uma dor icomensurável, algo desumano, de fato. Por entre todo aquele ruído distorcido que havia se tornado minha audição, eu pude ouvir o baque seco de um corpo sem cabeça caindo ao chão. Dor, dor, dor, como eu nunca havia sentido.

Pare com isso, eu já fiz pior com você outras vezes. Desta vez eu peguei até leve demais. Fresco.

Por quê eu não morria?

Você vai durar o quanto eu quiser que você dure. Ela inclinou minha cabeça sem corpo em direção ao chão, e vi, por entre a névoa vermelha de sangue e dor, meu corpo pelado, recoberto de sangue, sem cabeça, e o agora inútil cano tombado ao lado.

Vamos tentar de novo. Vou te mandar para um local mais agradável desta vez. E desta vez, você mesmo irá se torturar. Eu só vou assistir...É uma cabana linda no meio da neve, no meio do Canadá. Mais uma vez você será um escritor fracassado, cuja mulher o abandonou. Gostei muito da maneira que você reagiu a este cenário...

Senti um ventinho passando pela minha inútil cabeça, enquanto ela se preparava para um arremesso. Este seu momento de desespero é sempre maravilhoso, quando resolvo fazer de sua cabeça um ovo. Tenho que me lembrar disto depois...

Ovo? O quê?

Em um instante entendi o que ela quis dizer, quando, por um átimo de segundo, meus olhos enxergaram o papel de parede vermelho do corredor de mil portas se aproximando rapidamente.

O que acontece quando você arremessa um ovo na parede?

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Frio, frio.

Neve por todos os lados.

Ele caminhou até a janela. Evidentemente, não havia muito o que ser visto. Quase não era possível distinguir as formas dos pinheiros que circundavam a casa. A cabine. Frio, muito frio. Esfregou as mãos numa tentativa de restabelecer a circulação sanguínea ali. Por mais que tentasse, não conseguia afastar a dormência das pontas dos dedos. E tal dormência piorava ainda mais seu já abalado ânimo em escrever.

...