quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Sintonia dessintonizada.

...E pelo dia afora, o mau humor me foi roendo as entranhas. Bem sabia eu que tal situação era insustentável. Além de ser um desanimado, um "realista" de marca maior, o mau humor incontrolável me levaria ao exílio completo da sociedade ou ao manicômio, que é onde os doudos se encontram.

Dessarte, fui ter ao empório de alcóois, onde travei contacto com escuso atendente, o qual narrei a epopéia do dia anterior. Ele me ouviu atento, mas já com um olhar de interesse. Era deveras experiente neste tipo de questão teológica ou ideológica. "Cara," ele me disse, "tenho ali nos fundos da loja o remédio." Fomos ao canto obscuro do estabelecimento onde o sujeito me mostrou o barrilzinho de Amontillado.

Amontillado! Pensei. Amontillado!!!

Paguei o preço exorbitante pelo negócio. In vino veritas, e em outros compostos alcoólicos também. Fui prosseguindo o caminho, direção ao meu canto, meu lar. Olhava para os transeuntes vesgos com desdém absoluto. Meu estado repelente se tornara minha realidade, minha mente uma insólita prisão de mau humor. Abri caminho na multidão a golpes de cara fechada e ar de neo-nazista, sentei-me sozinho ao coletivo. Olhava para o barrilzinho, sentia seu aroma. Lá dentro estava a solução, talvez - e também a morte.

Fechada a porta atrás de mim, me vi finalmente sozinho, e suspirei aliviado. Pus a preciosa barrica por cima da mesa, busquei um copo. Enchi até a metade e sorvi. Ah, Amontillado. Percebo agora porque foi a causa da morte de Fortunato, o enterrado e queimado vivo.

Dez doses depois, estava eu já trocando animadas idéias com Sid, o Barret. Desta vez, lembrei-me de mandar lembranças do Símbolo para ele, o qual agradeceu e retribuiu a gentileza. Neste momento, a máquina de isolamento perfeita, deu um problema nos milhares de megapixels "and whatnot" e travou por completo. Eu e Sid olhamos para as entranhas do bicho mas não conseguimos entender nada, mas muito nos rimos das fadas ali presas, todas elas de organdi azul indecoroso.

Horas mais tarde, estávamos em Abu Dhabi, e o calor era opressivo, mas doses reforçadas do maravilhoso líquido nos davam forças para continuarmos a excursão até algum ponto da Morávia ou mesmo Cracóvia, o que viesse primeiro. Mas, quando assustei estávamos no Marrocos, onde Sid fez questão de me presentear com uma bolinha da mais pura resina concentrada de certa planta, declarada ilegal no mundo caduco em que vivemos. Fumaça, fumaça, cof cof.

Dali fomos para Quito, onde um terremoto sacudia o esqueleto dos prédios e matava as pessoas de frio e "frome", tendo que comer "vridro" para sobreviver. Não foi uma experiência mui agradável, mas ao menos fiquei com o paladar afiado, por assim dizer, e a língua cortante. Ou cortada, não lembro.

Horas mais tarde, nosso suprimento do divino produto acabou, e muito me lamentei. Momentos mais tarde, meu companheiro desapareceu por completo, tal como Bate-mam em todas as histórias. Fois só abaixar os olhos e verificar que o chão estava sujo de vômito. E o chão era de azulejos. Ao levantar a cabeça, bati com ela na pia e caí de cara no Celite, e morri afogado.

Tendo sido ressucitado por alguma espécie de força oculta, hoje me encontro em trânsito para o depósito de gado, onde ruminarei por dez horas a inexistência de existir. E já ansio pela fuga, pela nova dose de Amontillado, se assim conseguir travar contacto com meu obscuro negociador destas coisas tão ilegais, mas tão legais.

Assim, café. E tenho dito.