terça-feira, 28 de setembro de 2010

C-3.

Era agora.

Enquanto os pés batiam silenciosamente no chão, aproximando-se cada vez mais do local onde a folha ainda dançava ao sabor de um ilusório vento, ele tinha a nítida certeza de que aquilo era algo importante. Não saberia precisar bem por quê, mas tinha certeza disto.

Ao seu redor, todas as cinzentas construções abandonadas nada diziam. Eram silentes testemunhas de todo aquele absurdo que desenrolava perante seus olhos.

E agora, que estava a segundos de apanhar aquele enigma flutuante, parecia que o tempo havia entrado em marcha lenta também. Momentos se passavam feito horas, imersos na estranha viscosidade de toda aquela abstração excessiva ao seu redor.

Estava logo ali. à Distância de um braço ou menos, agora.

Estendeu o braço, abriu os dedos e se preparou. Como se apanhar aquele fragmento fosse significar sua vida ou morte. E de certa forma, era isto que aquilo significava. No meio daquela miríade de absurdos que havia se tornado sua vida, aquele papel significava o derradeiro fio de esperança.

Fechou os olhos e ordenou seus músculos do ombro, do braço, da mão a realizarem a tarefa.

Sentiu o quase inexistente volume do papel roçar em seus dedos e apertou com força. Pôde sentir a deformação causada pelo desproporcional esforço causado pela ação.

Abriu os olhos.

O papel, amarelecido pergaminho, estava firmemente preso entre seus dedos. Tudo era silêncio. Sentiu um certo medo de levá-lo aos olhos. Sabia que não se tratava apenas de um fragmento em branco, uma vez que já havia vislumbrado escritos em sua superfície.

Chega, disse sua voz interior. Dane-se tudo. O que teria a perder?

Olhou firmemente para a folha. De fato, havia um texto ali. Algo parecido com a escrita cursiva de uma pessoa...Trazendo-a mais perto de seus olhos, parecia algo escrito por uma mulher, a julgar pela elegância das letras, suaves e bem desenhadas.

Mas...não conseguia entender nada do que estava escrito ali. Eram escritos ininteligíveis, apesar de toda sua finesse gráfica. Não saberia dizer quantas vezes correu os olhos de cabo a rabo por toda a extensão daquela carta, procurando desesperadamente por algo que fizesse sentido no meio de todos aqueles grafismos.

Nada.

Sentiu um imenso peso em sua alma. Caiu de joelhos ao chão, sem nem ao menos sentir o rude impacto deles ao solo. Queria gritar, queria chorar, mas nada fez; sabia que de nada lhe valeria.

Estava tudo acabado. O mundo ao seu redor não existia, um labirinto falso de ilusões, de fantasmas há muito extintos de algo que algum dia fora tudo em sua vida...e que agora nem ao menos volume possuía.

Deixou a folha cair de sua mão enquanto mirava o vazio. Tudo ao seu redor. Vazio.

A folha rodopiou levemente, e foi pousar ao solo.

Olhava, atonitamente para aquilo. Quão frágil fora sua última dose de esperança. Sentia os olhos secos, a garganta extinta em um protesto aos céus, ao universo, que não conseguia expurgar.

Piscou. E viu.




A folha. Estava de cabeça para baixo.



Vislumbrou, entre os garranchos, um desenho familiar, não escrito. Os hieróglifos se uniam de uma forma que não sabia definir, mas que agora faziam sentido. Aquelas linhas se fundiam, vistas por aquele ângulo...

Formando o desenho de uma árvore. O que eram aparentemente letras repetidas nos versos iniciais daquele poema visual, eram em verdade, folhas. Folhas brancas.



Uma árvore branca.



Sentiu um arrepio percorrendo sua espinha. Sentiu tremores em seu corpo. Mas não vinham de seu interior, de seu âmago. Vinham do solo em si. Tudo tremia, e a sensação se tornava cada vez mais nítida. O chão embaixo de seus joelhos era cada vez mais sacudido por uma força indefinida, mas inexorável, cada vez mais absoluta.

Levantou-se de supetão. Vislumbrou rachaduras se formando debaixo de seus pés. Viu que muitos dos cinzentos prédios ao longe, tombavam silenciosamente, uns sobre os outros, dominós gigantes e mudos.

As fissuras aumentavam de tamanho. Mas não sentia nenhum medo.

O tremor era cada vez mais forte, mas nenhum som havia no ar. Nenhum rumor lhe chegava a seus ouvidos.


Do chão cinzento, viu uma forma estranha brotando. Uma forma orgânica.




Um galho.


Folhas...brancas.





Fechou os olhos e sentiu apenas o tremor. Não havia nenhum receio dentro de si. Não havia motivo para se ter medo, apesar de toda a incongruência, todo o absurdo do espetáculo que se desenrolava ao seu redor.

Abriu os braços em gesto de redenção. Não temia nada.

Não soube dizer quanto tempo ficou com os olhos fechados, mas sentia o apelo visual a lhe chamar. Levantou lentamente as pápebras e viu.



A árvore branca. Imensa. Onipotente em sua vista.


Todo o restante, todos aqueles ilusórios prédios haviam desaparecido. Estava como se suspenso numa imensidão, vazia por todos os lados, se enegrecendo progressivamente, num degradê lento até onde sua visão alcançava. Era como se estivesse suspenso em um imenso vazio, um vácuo de escuridão, onde a única fonte de luz....vinha da árvore.



Mas não se importava.



Tudo que lhe significava, tudo que lhe fazia sentido era a imensa árvore.


Sabia que nada daquilo lhe fazia sentido, lhe dava resposta alguma a todo o absurdo que precedera semelhante espetáculo. Mas não se importava também.


Inspirou fundo. E deu o primeiro passo em direção ao bizarro vegetal.