quarta-feira, 17 de junho de 2009

Colchetes. Feldspato. E quejandos.

(O Engravatado entra no recinto. Todos olham, mas não se importam. Todos notam, entretanto que tal sujeito traja um terno azul e uma gravata rosa)

ENGRAVATADO
Ah, aqui estou. Em pleno coração dessta cidade nefasta, pútrida, hedionda. E almejo obter uma refeição. Garçon!

(aproxima-se do mesa um pequeno sujeito)

GARÇON
Oui?

ENGRAVATADO
O que fazes aqui, seu mancebo inútil? Desejo um garçon!

GARÇON
Este é meu nome. Garçon dos Santos Silva Costa.

ENGRAVATADO
Pois sim. Desejo obter uma refeição. Será que o senhor poderia me ajudar em tal quesito, em tal ânsia, em tal hercúlea tarefa em dias tão tratantes, em tempos tão nauseabundos, em mares e ares tão díspares para que um simples sujeito possa existir?

GARÇON
Será que ao invés disto, o senhor não gostaria de obter um exemplar de algo bem dramático? Recomendo Shakespeare.

ENGRAVATADO
Que dizes tu? Almejo eu a obter uma refeição!

GARÇON
Então eu recomendo que o senhor vá a um restaurante. Isto aqui é um biblioteca.

ENGRAVATADO
Eu sei que estou no local certo! Pois eis que realmente crês que não existam outras fomes além da carnal? Além da normal? Meu repasto é interior, meu anseio é puramente espiritual! Almejo eu por pães que alimentem meu espírito.

GARÇON
Vá encher o saco do padre então. Obtenha umas hóstias por lá.

ENGRAVATADO
Isto é uma ignomínia! Eu desejo falar com o gerente deste infecto estabelecimento acerca de vossa maldita conduta, caro senhor!

GARÇON
Pois não. Sou eu o gerente.

ENGRAVATADO
Há pouco afirmaras que era o garção deste local!

GARÇON
Não o garção, não! Sou Garçon e exijo respeito! Fora daqui!

ENGRAVATADO
Me recuso terminantemente a sair daqui enquanto não for atendido.

GARÇON
E eu me recuso a atender uma pessoa tão mal vestida.

ENGRAVATADO
Pensei eu que não existia código de vestimenta para se obter acesso a uma biblioteca.

GARÇON
Ceci ne pas une bibliotteque. Vous les vou ouvrir le croissant?

ENGRAVATADO
Não adianta tentares me lubridiar com tal conversa em chinês! Sou fluente em mandarim e analfabeto em hebraico.

GARÇON
O senhor esta a me encher a paciência. E eu já estou a falar feito o senhor, maldito seja!

ENGRAVATADO
A-há. Bem o sei que meu magnetismo pessoal é irresistível.

GARÇON
Ponha-se daqui para fora, biltre!

ENGRAVATADO
Não. Terminantemente não.

GARÇON
(sacudindo a cabeça de ódio)
Pois bem. Digas o que queres, energúmeno e verei se posso vos atender.

ENGRAVATADO
Desejo apenas um copo de purê de batata e três canudinhos.

GARÇON
Está bem. Qualquer coisa para ver-me livre de vossa pessoa em este estabelecimento.
(sai para providenciar)

(o Engravatado olha ao redor triunfante. As pessoas restantes na biblioteca são apenas duas, uma senhora de meia-idade e um cacho de uvas. O engravatado senta-se em uma mesa e começa a devorar aos pouquinhos o livro que ali jazia.)

GARÇON
(voltando, esbaforido)

Aqui está sua droga de purê. Agora, para que três canudinhos?

ENGRAVATADO
Um deles é para que me acompanhes. E o outro é para a Senhora ao nosso lado, que possui tão belos brancos dos olhos.

SENHORA
Não, não e não! Não serei casada com alguém que se traja tão ultrajantemente!

(Sai andano com o peito estufado em ar de repugnância. Bate a porta ao sair.)

ENGRAVATADO
Pois sim, que lástima. Enfim, deixemos o outro então para o cacho de uvas então.

CACHO DE UVAS
...

ENGRAVATADO
Quem cala, consente. Aproxime-se.

CACHO DE UVAS
...

GARÇON
Ele não quer saber! Está a vos desprezar.

ENGRAVATADO
Tristes tempos este. Enfim.

(Reclina-se e apanha seu canudinho. Faz vácuo e tenta heroicamente aspirar as batatas esmagadas pelo cilindro oco de matéria plástica. Faz uma pausa e pressiona as têmporas, evidentemente em franco sofrimento. Tenta novamente. Faz força sobre-humana para tentar obter sucesso. Veias ficam estufadas em sua testa, ao redor dos olhos e no pescoço. Toda a extensão de seu rosto transfigura-se e torna-se ruborizada.)

GARÇON
O senhor não está aparentando estar muito bem.

ENGRAVATADO
Hmmmmmmmmmmm.....arghhhhhhhhhmmmmmm.

(Torna-se cada vez mais avermelhado. As veias continuam a aumentar seu calibre, periculosamente, cada vez mais e mais, até que a hiperemia seja evidente até mesmo em seus olhos, que começam a se tornar cada vez mais exoftálmicos. Após mais alguns minutos de luta, os olhos do Engavatado pulam para fora, ao mesmo tempo que sua cabeça implode.)

GARÇON
Que lástima, deveras. Minha vez. Aguarde a sua.
(aponta para o cacho de uvas)


(Apanha seu canudinho e começa a tentar obter sucesso na falida empresa. Neste momento, arrebentam as portas aos gritos:)

MONSENHOR
Ninguém espera a Inquisição Espanhola!

GARÇON
Jamais me apanharão com vida!

(Sai correndo segurando o copo com as extintas batatas. Atravessa o portal de vidro de uma das janelas e se atira no vazio.)

MONSENHOR
Sujeito estranho. Pois bem rapazes, prendam o elemento! Cuidado, é extremamente violento!

(Os inquisidores se dirigem cautelosamente em direção ao cacho de uvas. De repente, todos os bagos de tal cacho explodem em uníssono e letal estrondo. Todos tombam mortos ao chão. Aparece o Fisioterapeuta, que contempla o cenário e diz, desconsolado:)

FISIOTERAPEUTA
Eu queria ter feito medicina. Ou astronomia Fenícia.

(O planeta todo explode. Fim.)