-Boa noite. Bem vindos à mais uma reunião dos Noiados Anônimos. Estamos recebendo hoje vários novatos nas artes de ser Noiado. Vamos receber o primeiro senhor Novato.
-Novato é o caralho.
-Ah, ha, ha. Calma, meu senhor. Mas conte para nós.
-Meu nome é Medo. E existo desde 1977. Setembro.
-Achei que o medo existisse antes. Mas enfim, conte-nos.
-Cale-se, primeiramente. Eu tenho medo de tudo. Medo de ser ridículo, medo de não passar, medo de passar, medo de alturas, medo de falar demais, de fazer brincadeiras e soar estúpido, medo de falar com quem eu não conheço, medo de desenhar e ficar uma merda(sempre fica), medo de atrapalhar os outros, medo de andar sozinho altas horas da noite, medo de que sempre me abandonem, medo de--
-Ah, medo. Mas a fila deve andar. Devemos pegar os depoimentos de todos os membros, nesta reunião semanal. Vá para seu lugar.
-Tenho medo de me sentar ao lado de um mala, de um neurótico. Medo de que me perguntem demais e--
-Vá logo. Muito bem, quem virá em seguida? Que tal você, senhor.
-Meu nome é Raiva, e tenho raiva de tudo; eu odeio as pessoas, em geral. Odeio joguinhos idiotas que as pessoas fazem. Odeio aqueles que jogam lixo no chão, entopem os bueiros todos e depois, quando seu barracão é inundado, afirma que a culpa é da prefeitura que não limpa os bueiros; odeio todos que são fingidos, odeio crentes. Odeio religião. Odeio burocracia, burrocracia, estúpidos processos inerentes a se obter qualquer permissão especial para fazer isto, odeio relacionamentos falsos, casamentos por simples acomodação...
-Ah sim, a raiva pode ser algo muito--
-Não me interrompa! Odeio quem faz isso!
-Mas o senhor deve odiar também quem não deixa os outros falar.
-Sim. Droga. Tá certo. Irei me calar. Odeio estar errado. Saco. Cu dos infernos.
-Bem, quem mais? Que tal você?
-Eu só enxergo cinza.
-Hein?
-É. Só vejo monocromáticos cinzas. Tons de cinza, por todos os lados. Vejo as cores, mas só interpreto os cinzas. O céu pode estar sem nuvens, mas eu só vejo um tom de aguada suja no firmamento, todos os dias. As ruas, todas cinzas. As pessoas. As cores, parecem não existir além de meu monitor de vídeo.
-Que saco deve ser isso, hein? Mas vamos prosseguir. Você.
-Eu sou um chato. Reclamo de tudo. Tudo está ruim. Dizem que tenho tudo, mas me sinto como se não tivesse nada. E bem sei que estou errado, e só faço reclamar. Não consigo agir, não consigo sair do marasmo. E reclamo, reclamo. Escrevo todos os dias, reclamando. E reclamo que me abandonam por reclamar demais. E fico puto com todos eles que o fazem! Para mim isto é abominável, um abandono. Mas não posso fazer nada, pois sei que estou errado. E odeio isto!
-Me parece que já vi o senhor antes por aqui.
-Sim. Não! Nego. E acho ridículo que me acusem de tal coisa!
-Sim, sim. Vejo bem.
-Vê nada.
-Pois bem. Prossigamos. Você lá no fundo.
(o cara lá do fundão quase cai de sua cadeira. E sacode a cabeça, não quer subir de maneira alguma ao pódio. O Orador novamente o exorta, mas ele estampa pânico nos olhos. Alguns dos Noiados mais chegados se reunem em torno dele e com ele conversam. Após muito falarem e falarem, ele finalmente é convencido, e avança hesitantemente ao pódio, andando duro feito um robô ou um padrinho de casamento engravatado que morre de vergonha de estar ali.)
-Não se acanhe, meu caro. Diga.
-Eu...eu tenho vergonha. (esconde a cara nas mãos) Sou tímido demais.
-Calma, estamos aqui para discutir tais coisas. Pode falar.
-Eu tenho vergonha de falar.
(o Raivoso dantes se exalta:)
-Fale logo, ô caralho!
-Bem...eu tenho muita vergonha. De falar. De dizer o que penso. De ser eu mesmo. De falar merda. De mostrar as coisas que eu faço, as músicas que componho, os rabiscos que elaboro. Tenho medo de ser arrogante quando me elogiam, tenho desconfiança de elogios, pois sempre acho que estão falando por falar, e me dá muita vergonha ser tratado assim. Mas sei que é difícil lidar com alguém que é tímido como eu. Eu não consigo chegar perto de uma pessoa atraente, sem ter ânsias de sair correndo. Olho para o chão enquanto ando, para não encontrar os Olhos, sempre eles, sempre me olhando, sempre me analisando. Sempre, sempre. E--
-Certo, certo, mas a fila deve andar.
-Falei demais né? Que vergonha!
-Volte para seu lugar. Quem mais? Você, de azul aí.
-Eu sou triste.
-Ah, uma condição nada agradável, por vezes. Mas diga.
-Eu fico triste todos os dias. Não existe um dia que eu não me sente a olhar para minhas mãos e imaginar o que poderia fazer com elas. Não existe um dia que eu não analise a situação do mundo, das pessoas, e não me sinta arrasado por isto. Vejo pessoas se enganando o tempo inteiro, mentindo umas para as outras, e fico triste. Fico triste por que me acham tanta coisa mas bem sei que nada sou; me entristece ter de ser um ator na vida, para se chegar à algum lugar. Me entristece ver que pessoas que se amam fazem joguinhos, especialmente as mulheres, para "testar" o amor de seus companheiros, e muito se espantam quando eles não recebem tal teste com alegria e entusiasmo. Me entristece ver que está tudo errado, e que só vai piorar.
-Complicado. Fico triste só de te ouvir.
-Normal. Todos saem de perto de mim depois de alguns minutos de conversa. Todos me abandonam. E nem mesmo posso culpá-los.
-Ah, é complicado ser Noiado. Estamos aqui para tentar te ajudar.
-Porra nenhuma. Isto não é nada além de um embuste; é apenas uma conversa interna, uma conversa com o espelho, uma tentativa vã de expor de maneira engraçadinha suas neuroses internas, seu babaca.
-Opa! Que é isto. O senhor está soando como o outro membro ali, o da raiva.
-Seu imbecil. Eu sei de tudo. Sei que você se formou numa coisa, que não serviu para nada, e tentou fazer outro curso, mas largou no meio, por ter tomado ódio mortal aos "artistas flácidos" modernos que tanto falams e só expoem lixo, lixo, lixo, por cima de um palanque, de uma falácia, de um discurso idiota e execrável. Sei que trabalhas com algo que não gostas; mas de que gostas?? O senhor não gosta é de nada!
-O quê?? Como sabe destas coisas? Quem te falou estas coisas? Você andou me espionando??
-Porra nenhuma, seu mané.
-Então...
-Seu idiota. Sei que você, no dia de ontem, se olhou no espelho e enxergou um borrão indefinido, uma sombra de pessoa. Algo que poderia ser mas não foi nem nunca vai ser, pois tens raiva de tudo, medo de tudo, só enxerga o cinza, ficas triste com tudo, questiona a tudo e todos, mas bem sabe que faz parte do mesmo monte de bosta que é a humanidade, e que recentemente resolveu desistir de tudo.
-Mas...
-Mas nada, mas nada. Detestas todos, detesta ter crescido com a esperança que as coisas fossem melhorar, e na verdade elas só pioram, você só mais e mais envelhece e cada vez mais se aborrece. Estás diante de um espelho, mas não enxerga nada, falas sozinho na frente do reflexo, dentro das quatro paredes. Quer ser isso e aquilo, mas não consegue sequer se motivar nem a estudar, a melhorar. Pegaste sua lista de "top 5 dream jobs" e a rasgou, queimou, tudo, tudo. Noves fora, coisa nenhuma, oras.
-E também não se esqueças! Odeias tanto as coisas, se revolta tanto contra o mundo que nem mesmo dentro de sua solitária estás achando consolo, paz. Paz? Nunca soube o que é isto! Nem mesmo dormindo, onde os sonhos que ali abundam são de natureza psicopata, olhos cortados, vinagre e limão espalhado por cima das feridas abertas, empurrar o cara no rio de lava.
-Isto, isto. Deixe pra fora, ponha tudo pra fora.
-E também me pergunto, o que as pessoas são? Todas se enganm, todas fazem mal umas as outras. E é normal, normal. Anormal é pensar que isto é anormal. Anormal é não quere nunca machucar ninguém, e ser tachado de idiota bonzinho por ser assim. Anormal é quere não ser o chato, mas sempre ser o chato por não querer ser. Anormal é não querer fazer mal a ninguém, e por isto ser rejeitado, rechaçado, inferiorizado. Por todas as pessoas de quem já gostei, todas me julgam "bonzinho demais", tedioso demais.
-E não é uma merda? Não te dá raiva? Não te deixa triste?
-É um inferno na terra. Odeio tudo isso! Odeio essa merda de mundo, onde tudo dá errado, onde todos se esforçam para atrapalhar os outros, por esporte, por mera diversão doentia. Onde as mulheres reclamam eternamente que não encontram os famosos "homens ideiais", porque simplesmente rejeitam todos os caras "bonzinhos" em prol de idiotas que as tratam feito cães sarnentos, para depois procurarem os tais "bonzinhos" e em seus ombros chorarem, ao passo que afirmam que nenhum presta, nenhum. Idiotas são as pessoas, que se casam, aos olhos de um deus, aos olhos de uma sociedade idiota, de branco, sendo que branco de cu é rola. Grande pureza, pois sim. E foda-se a pureza também, fodam-se os casamentos, toda esta hipocrisia.
-E fodam-se também as pessoas falsas, os frangos miseráveis que te dão amigáveis tapinhas nas costas, exibindo um sorriso de 146 incisivos brancos e polidos, para depois enfiarem a faca nas suas costas.
-E danem-se os empregos, as ocupações de sonho, que só dão trabalho, e só rendem hilários comentário por parte de todos os outros frangos, que julgam que música não é trabalho, que desenhar é coisa de criança. Que o emprego bom é aquele público, púbico, ora bolas.
-E odeio o fato que estou cada vez mais frango por tudo isso. Por estar me tornando cansado de tentar, e somente falhar. Por estar propenso a me tornar um zumbi, trilhar o caminho à zumbilândia pública, onde terei dinheiro, mas nenhuma alma.
-E você é um preguiçoso também né.
-Por não enxergar nenhum caminho. Não ver nenhuma motivação, neste imenso Admirável Mundo Novo que se tornou o mundo moderno. Tenho preguiça, pois no final das contas, nada vale a pena, nada. Se esforçar, para quê?? Para comprar tralahas? Para consumir melhor? Para me exibir diante de pessoas, e assim angariar uma companhia que só se unirá a mim por interesse? Por conta de meu carro, de minha conta, de meu frigobar, de minhas posses, de minha estética corrigida por Photoshop, digitalmente ampliado, melhorado? Para depois ter que me crismar, para casar numa igreja por que a noiva assim o quer, e a sociedade assim o exige?
-E família, o que é uma família. Tirando algumas exceções, todos querem te ver pelas costas. E você sempre se revolta contra seus pais, mas mal sabe que é apenas uma versão estendida deles, dele, de seus comportamentos, suas tolas obsessões. Sempre ser o fracassado, a exceção, aquele que se refugia em meios ilícitos ou lícitos aos olhos caducos da lei idiota que rege os homens; o cara que se esconde de tudo e de todos.
-De tudo e de todos.
-Por simplesmente não aceitar nada, questionar tudo e todos, e mesmo a si mesmo, por masi estranha e idiota que a frase possa parecer.
-Por não querer sair de casa, enfrentar a noite e seus olhos, suas avaliações idiotas, seus valores imbecis.
-Por não querer nunca mais se envolver com NINGUÉM, por achar que tudo sempre dá errado, que egoístas somos todos, eu tu eles, nós vós eles, por saber que o que resta no final de todos relacionamentos é um armistício, uma união onde a grande diversão é apurrinhar o cônjuge, a moeda de troca de favores é o sexo, e para quê? Para transmitir aos filhos o legado de minha miséria? Minha visão distorcida - dizem - do mundo??
-Não quero deixar isto para ninguém. Ningué merece mais de um Noiado.
-Ninguém. Porquê o senhor não se mata?
-Porque não consigo ser tão egoísta a ponto de abandonar uma certa pessoa, que já foi abandonada por um certo marido e será abandonada posteriormente pelo primogênito, pelo preferido.
-Encerremos aqui a reunião dos Noiados Anônimos, de nome Buriol. Mui anônimo, de facto.
.
.
.
E depois ainda estranham o fato que eu prefiro um mundo menos real e menos chato...Porquê será?
O que me resta, sendo esta merda toda?
-Novato é o caralho.
-Ah, ha, ha. Calma, meu senhor. Mas conte para nós.
-Meu nome é Medo. E existo desde 1977. Setembro.
-Achei que o medo existisse antes. Mas enfim, conte-nos.
-Cale-se, primeiramente. Eu tenho medo de tudo. Medo de ser ridículo, medo de não passar, medo de passar, medo de alturas, medo de falar demais, de fazer brincadeiras e soar estúpido, medo de falar com quem eu não conheço, medo de desenhar e ficar uma merda(sempre fica), medo de atrapalhar os outros, medo de andar sozinho altas horas da noite, medo de que sempre me abandonem, medo de--
-Ah, medo. Mas a fila deve andar. Devemos pegar os depoimentos de todos os membros, nesta reunião semanal. Vá para seu lugar.
-Tenho medo de me sentar ao lado de um mala, de um neurótico. Medo de que me perguntem demais e--
-Vá logo. Muito bem, quem virá em seguida? Que tal você, senhor.
-Meu nome é Raiva, e tenho raiva de tudo; eu odeio as pessoas, em geral. Odeio joguinhos idiotas que as pessoas fazem. Odeio aqueles que jogam lixo no chão, entopem os bueiros todos e depois, quando seu barracão é inundado, afirma que a culpa é da prefeitura que não limpa os bueiros; odeio todos que são fingidos, odeio crentes. Odeio religião. Odeio burocracia, burrocracia, estúpidos processos inerentes a se obter qualquer permissão especial para fazer isto, odeio relacionamentos falsos, casamentos por simples acomodação...
-Ah sim, a raiva pode ser algo muito--
-Não me interrompa! Odeio quem faz isso!
-Mas o senhor deve odiar também quem não deixa os outros falar.
-Sim. Droga. Tá certo. Irei me calar. Odeio estar errado. Saco. Cu dos infernos.
-Bem, quem mais? Que tal você?
-Eu só enxergo cinza.
-Hein?
-É. Só vejo monocromáticos cinzas. Tons de cinza, por todos os lados. Vejo as cores, mas só interpreto os cinzas. O céu pode estar sem nuvens, mas eu só vejo um tom de aguada suja no firmamento, todos os dias. As ruas, todas cinzas. As pessoas. As cores, parecem não existir além de meu monitor de vídeo.
-Que saco deve ser isso, hein? Mas vamos prosseguir. Você.
-Eu sou um chato. Reclamo de tudo. Tudo está ruim. Dizem que tenho tudo, mas me sinto como se não tivesse nada. E bem sei que estou errado, e só faço reclamar. Não consigo agir, não consigo sair do marasmo. E reclamo, reclamo. Escrevo todos os dias, reclamando. E reclamo que me abandonam por reclamar demais. E fico puto com todos eles que o fazem! Para mim isto é abominável, um abandono. Mas não posso fazer nada, pois sei que estou errado. E odeio isto!
-Me parece que já vi o senhor antes por aqui.
-Sim. Não! Nego. E acho ridículo que me acusem de tal coisa!
-Sim, sim. Vejo bem.
-Vê nada.
-Pois bem. Prossigamos. Você lá no fundo.
(o cara lá do fundão quase cai de sua cadeira. E sacode a cabeça, não quer subir de maneira alguma ao pódio. O Orador novamente o exorta, mas ele estampa pânico nos olhos. Alguns dos Noiados mais chegados se reunem em torno dele e com ele conversam. Após muito falarem e falarem, ele finalmente é convencido, e avança hesitantemente ao pódio, andando duro feito um robô ou um padrinho de casamento engravatado que morre de vergonha de estar ali.)
-Não se acanhe, meu caro. Diga.
-Eu...eu tenho vergonha. (esconde a cara nas mãos) Sou tímido demais.
-Calma, estamos aqui para discutir tais coisas. Pode falar.
-Eu tenho vergonha de falar.
(o Raivoso dantes se exalta:)
-Fale logo, ô caralho!
-Bem...eu tenho muita vergonha. De falar. De dizer o que penso. De ser eu mesmo. De falar merda. De mostrar as coisas que eu faço, as músicas que componho, os rabiscos que elaboro. Tenho medo de ser arrogante quando me elogiam, tenho desconfiança de elogios, pois sempre acho que estão falando por falar, e me dá muita vergonha ser tratado assim. Mas sei que é difícil lidar com alguém que é tímido como eu. Eu não consigo chegar perto de uma pessoa atraente, sem ter ânsias de sair correndo. Olho para o chão enquanto ando, para não encontrar os Olhos, sempre eles, sempre me olhando, sempre me analisando. Sempre, sempre. E--
-Certo, certo, mas a fila deve andar.
-Falei demais né? Que vergonha!
-Volte para seu lugar. Quem mais? Você, de azul aí.
-Eu sou triste.
-Ah, uma condição nada agradável, por vezes. Mas diga.
-Eu fico triste todos os dias. Não existe um dia que eu não me sente a olhar para minhas mãos e imaginar o que poderia fazer com elas. Não existe um dia que eu não analise a situação do mundo, das pessoas, e não me sinta arrasado por isto. Vejo pessoas se enganando o tempo inteiro, mentindo umas para as outras, e fico triste. Fico triste por que me acham tanta coisa mas bem sei que nada sou; me entristece ter de ser um ator na vida, para se chegar à algum lugar. Me entristece ver que pessoas que se amam fazem joguinhos, especialmente as mulheres, para "testar" o amor de seus companheiros, e muito se espantam quando eles não recebem tal teste com alegria e entusiasmo. Me entristece ver que está tudo errado, e que só vai piorar.
-Complicado. Fico triste só de te ouvir.
-Normal. Todos saem de perto de mim depois de alguns minutos de conversa. Todos me abandonam. E nem mesmo posso culpá-los.
-Ah, é complicado ser Noiado. Estamos aqui para tentar te ajudar.
-Porra nenhuma. Isto não é nada além de um embuste; é apenas uma conversa interna, uma conversa com o espelho, uma tentativa vã de expor de maneira engraçadinha suas neuroses internas, seu babaca.
-Opa! Que é isto. O senhor está soando como o outro membro ali, o da raiva.
-Seu imbecil. Eu sei de tudo. Sei que você se formou numa coisa, que não serviu para nada, e tentou fazer outro curso, mas largou no meio, por ter tomado ódio mortal aos "artistas flácidos" modernos que tanto falams e só expoem lixo, lixo, lixo, por cima de um palanque, de uma falácia, de um discurso idiota e execrável. Sei que trabalhas com algo que não gostas; mas de que gostas?? O senhor não gosta é de nada!
-O quê?? Como sabe destas coisas? Quem te falou estas coisas? Você andou me espionando??
-Porra nenhuma, seu mané.
-Então...
-Seu idiota. Sei que você, no dia de ontem, se olhou no espelho e enxergou um borrão indefinido, uma sombra de pessoa. Algo que poderia ser mas não foi nem nunca vai ser, pois tens raiva de tudo, medo de tudo, só enxerga o cinza, ficas triste com tudo, questiona a tudo e todos, mas bem sabe que faz parte do mesmo monte de bosta que é a humanidade, e que recentemente resolveu desistir de tudo.
-Mas...
-Mas nada, mas nada. Detestas todos, detesta ter crescido com a esperança que as coisas fossem melhorar, e na verdade elas só pioram, você só mais e mais envelhece e cada vez mais se aborrece. Estás diante de um espelho, mas não enxerga nada, falas sozinho na frente do reflexo, dentro das quatro paredes. Quer ser isso e aquilo, mas não consegue sequer se motivar nem a estudar, a melhorar. Pegaste sua lista de "top 5 dream jobs" e a rasgou, queimou, tudo, tudo. Noves fora, coisa nenhuma, oras.
-E também não se esqueças! Odeias tanto as coisas, se revolta tanto contra o mundo que nem mesmo dentro de sua solitária estás achando consolo, paz. Paz? Nunca soube o que é isto! Nem mesmo dormindo, onde os sonhos que ali abundam são de natureza psicopata, olhos cortados, vinagre e limão espalhado por cima das feridas abertas, empurrar o cara no rio de lava.
-Isto, isto. Deixe pra fora, ponha tudo pra fora.
-E também me pergunto, o que as pessoas são? Todas se enganm, todas fazem mal umas as outras. E é normal, normal. Anormal é pensar que isto é anormal. Anormal é não quere nunca machucar ninguém, e ser tachado de idiota bonzinho por ser assim. Anormal é quere não ser o chato, mas sempre ser o chato por não querer ser. Anormal é não querer fazer mal a ninguém, e por isto ser rejeitado, rechaçado, inferiorizado. Por todas as pessoas de quem já gostei, todas me julgam "bonzinho demais", tedioso demais.
-E não é uma merda? Não te dá raiva? Não te deixa triste?
-É um inferno na terra. Odeio tudo isso! Odeio essa merda de mundo, onde tudo dá errado, onde todos se esforçam para atrapalhar os outros, por esporte, por mera diversão doentia. Onde as mulheres reclamam eternamente que não encontram os famosos "homens ideiais", porque simplesmente rejeitam todos os caras "bonzinhos" em prol de idiotas que as tratam feito cães sarnentos, para depois procurarem os tais "bonzinhos" e em seus ombros chorarem, ao passo que afirmam que nenhum presta, nenhum. Idiotas são as pessoas, que se casam, aos olhos de um deus, aos olhos de uma sociedade idiota, de branco, sendo que branco de cu é rola. Grande pureza, pois sim. E foda-se a pureza também, fodam-se os casamentos, toda esta hipocrisia.
-E fodam-se também as pessoas falsas, os frangos miseráveis que te dão amigáveis tapinhas nas costas, exibindo um sorriso de 146 incisivos brancos e polidos, para depois enfiarem a faca nas suas costas.
-E danem-se os empregos, as ocupações de sonho, que só dão trabalho, e só rendem hilários comentário por parte de todos os outros frangos, que julgam que música não é trabalho, que desenhar é coisa de criança. Que o emprego bom é aquele público, púbico, ora bolas.
-E odeio o fato que estou cada vez mais frango por tudo isso. Por estar me tornando cansado de tentar, e somente falhar. Por estar propenso a me tornar um zumbi, trilhar o caminho à zumbilândia pública, onde terei dinheiro, mas nenhuma alma.
-E você é um preguiçoso também né.
-Por não enxergar nenhum caminho. Não ver nenhuma motivação, neste imenso Admirável Mundo Novo que se tornou o mundo moderno. Tenho preguiça, pois no final das contas, nada vale a pena, nada. Se esforçar, para quê?? Para comprar tralahas? Para consumir melhor? Para me exibir diante de pessoas, e assim angariar uma companhia que só se unirá a mim por interesse? Por conta de meu carro, de minha conta, de meu frigobar, de minhas posses, de minha estética corrigida por Photoshop, digitalmente ampliado, melhorado? Para depois ter que me crismar, para casar numa igreja por que a noiva assim o quer, e a sociedade assim o exige?
-E família, o que é uma família. Tirando algumas exceções, todos querem te ver pelas costas. E você sempre se revolta contra seus pais, mas mal sabe que é apenas uma versão estendida deles, dele, de seus comportamentos, suas tolas obsessões. Sempre ser o fracassado, a exceção, aquele que se refugia em meios ilícitos ou lícitos aos olhos caducos da lei idiota que rege os homens; o cara que se esconde de tudo e de todos.
-De tudo e de todos.
-Por simplesmente não aceitar nada, questionar tudo e todos, e mesmo a si mesmo, por masi estranha e idiota que a frase possa parecer.
-Por não querer sair de casa, enfrentar a noite e seus olhos, suas avaliações idiotas, seus valores imbecis.
-Por não querer nunca mais se envolver com NINGUÉM, por achar que tudo sempre dá errado, que egoístas somos todos, eu tu eles, nós vós eles, por saber que o que resta no final de todos relacionamentos é um armistício, uma união onde a grande diversão é apurrinhar o cônjuge, a moeda de troca de favores é o sexo, e para quê? Para transmitir aos filhos o legado de minha miséria? Minha visão distorcida - dizem - do mundo??
-Não quero deixar isto para ninguém. Ningué merece mais de um Noiado.
-Ninguém. Porquê o senhor não se mata?
-Porque não consigo ser tão egoísta a ponto de abandonar uma certa pessoa, que já foi abandonada por um certo marido e será abandonada posteriormente pelo primogênito, pelo preferido.
-Encerremos aqui a reunião dos Noiados Anônimos, de nome Buriol. Mui anônimo, de facto.
.
.
.
E depois ainda estranham o fato que eu prefiro um mundo menos real e menos chato...Porquê será?
O que me resta, sendo esta merda toda?