terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Demissão.

A tarde caía com vagareza incomum.

E mesmo assim, ele sentia que as horas não estavam sendo suficientes. Dias e dias, sem emprego, sem amarras. Decisão sua, decisão da vida, acasos. Não saberia precisar se tinha sido adequado ou não. Tinha se fartado de aguentar, tolerar aquele absurdo, tempo demais se passou ali, no local onde as horas não passavam, escorriam. Coisa viscosa, matéria para muita perda de tempo, perda de todo o sentido.

A bomba havia explodido alguns dias atrás, com a inesperada notícia de que estariam reduzindo isto e aquilo, enxugando quadros de funcionários, organizando despesas, coisas assim, entendo, entendo, há que se gastar dinheiro para se fazer dinheiro, preparar a auditoria, determinar aqueles que são dispensáveis e os que são valiosos.

Dizem.

Recebeu com sobriedade a novidade, tratou de conjecturar planos, de adquirir coisas, preparar o terreno para o ocaso que viria em seguida. Sim; por mais que ele sinceramente desejasse sair dali, não estava preparado para nada que viria em seguida. E com tanta coisa na vida, tanta despesa, tanto orçamento pululando em suas finanças, não pôde deixar de se sentir aturdido.

O caminho, sempre tão claro e ao mesmo tempo sombrio, insípido, desprovido de excitamento e de motivação, agora se tornara um buraco negro indefinido, onde tudo era possível mas somente as más perspectivas tomavam as rédeas de sua imaginação. Daí tanto escapismo. Tanta farmacologia, dita ilegal, aos olhos caducos da lei e da moral, dos bons costumes, da puta que o pariu, por assim dizer.

Quem estava na merda não eram eles.

Dias e dias de desfocada realidade, de horas a escorrer pelas paredes, pelo reboco inacabado do quarto. Aromas mofados, visão turva. Muita comida mas nenhum nutriente, apenas calorias e mais calorias. Todo o tempo do mundo, todas as horas do universo, à sua disposição.

Sentado, escornado na cadeira, sentia o sangue viscoso a passar por ali, captar oxigênio, alcalóides que não deveriam ali estar mas que alegremente eram distribuídos ao restante dos órgãos, em especial aquela massa cinzenta como seu dono, que tanto ansiava, mais e mais, mais um gole, mais um trago, mais fumaça.

Horas e horas. Sentia o formigamento dos dedos, sentia os olhos das paredes a espreitar, por todos os lados, olhos. Tempo, que tanto era disponível agora, passando, minutos gosmentos a emperrar o final de tarde.

Libertação, mas a alto custo, pois sim.

Sabia, entretanto, que estava na hora. Mais uma dose, mais um pouco, e lá estava, no fundo de sua mente, a comichão cerebral necessária. E ali, logo ali, encerrada em um estojo, aguardando por seu toque, estavam as seis cordas. Bastavam seis.

Para isso existe o tempo livre, para isso existe a inspiração mesmo bioquimicamente corrompida. Para isso existe a razão de ser que sentia ao fazer tal coisa. Tantos equipamentos, comprados ao longo dos anos mal remunerados.

Cambaleantemente apanhou o instrumento, fez as conexões sem nem saber como, não deixando de se perguntar por que ainda não haviam instrumentos sem a necessidade daqueles cabos que tanto lembravam esguias serpentes, elétricos ofídios. Ligar na tomada, sentir a eletricidade.

Música, para sempre ela, aquela coisa, aquele arrepio que somente ela sabia surtir sobre aquele homem esquecido naquele canto por todos e si próprio. Morreria um dia, mas deixaria sua música, deixaria suas tentativas sonoras de produzir calafrios em ouvintes alheios.

Caía a tarde, mas crescia a luz que das cordas emanavam. Ou talvez só seria mais um efeito do estado inebriado? Não saberia dizer, mas não importava.