sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Arqueologia.

Queria eu comprar artigos, estes para o ofício de transcriptor reverso do desconexo se conectando ou desconectando-se ameaçadoramente da realidade. Pois, se queres da vida fugir, arrume um emprego onde os detalhes, os detalhes são tão absolutamnete necessários, tão indispensáveis e inumeráveis, que a coisa desanda caso sua atenção seja desviada do cuneiforme por mais de cinco segundos. Em verdade, na cidade morta, existiam vidas, mas sabia eu que apenas importava seguir a morte, uma vez que assim me garantiria a vida, o pão nosso que estais no céu ou coisa assim, sendo, fondo.

Artigos, loja de. Departamento de sumérico. Departamento de hieróglifos, arqueologia mundana. De fundo de quintal. Não, não, meu caso é outro, minha fuga é por demais escapista para poder ser quantizada, somada, acrescentada de números e cifras. Vou direto para a tumba do rei Xenops III, esse rei que nunca houve mas que inventei em tese para provar em vida que a sua vida foi algo digno de nota, ainda que esta nota seja em uma escala não-existente na pauta, na cifra musical humana. É preciso ganhar tempo, é preciso adiar a vida, ainda que com isso adiantemos a morte.

Em esta loja, encontramos procrastinadores das mais diversas funções, agentes da polícia que não querem mais ver sangue, agentes do governo que não querem mais governar, donas de casa que não têm nada de donas, designers modernos que descobriram que a arte é uma fraude, e aqueles que, como eu, tentam encontrar no passado alguam explicação para o presente, estes arqueólogos da vida, da morosidade dos dias mais nefastos, da existência mais inexistente. Estes, normalmente nao se falam, não tiram suas dúvidas, apesar de elas existirem, em profusão dentro de suas mentes um tanto quanto desajustadas.

Entre as prateleiras de artigos para a moderna compreensão do passado, encontramos perdidos artefactos, a roseta de Zyo, a pedra fndamental de Alexandria, o dedo mindinho de um desavisado mentiroso que circulou em Roma. Coisas, que existem ou não, mas que tanto preenchem a vida dos arqueólogos. Habilmente nos desviamos de questões menos relevantes, como a saúde, o bem-estar da presença onipotente da vida que se desfaz cada vez mais, cada dia mais, cada momento menos, cada macaco no seu galho, ora bolas. Desviamos o olhar dos demais colegas de profissão, mas procuramos por novas e mais justificáveis justificativas para a obtenção da licença, da permissão de adiar a vida, enquanto se espera a morte.

Alguns deles vêm em pares, têm suas razões para isto - ou tentam se unir em alianças de ouro maciço mas com nenhum peso real, ou procuram adiar a vida eterna obtida através da perpetuação da espécie. Eu, busco somente a justificativa fundamental para aqui estar, pesquisando o passado, sondando o pó, escovando pedras carcomidas pelo tempo e pela memória. Revirando ossos, procurando se achar no meio do passado, enquanto o futuro, cada vez mais próximo, se torna mais e mais curto. Vislumbro lágrimas nos olhos de alguns de meus colegas, mas eles apenas fungam em silêncio, olhando para a prancha diante de seus olhos, o papiro debaixo da luz ultravioleta, os óculos de proteção se tornam baços das pequenas cascatas de gotas amargas que dos olhos saem. É a idade. É a crise. É a vida.

Pesquisa, pesquisa. Procurar as chaves do presente no passado, nas areias já há tanto esquecidas, varridas pelo tempo, água por debaixo da ponte, líquidos que não mais movem moinhos. Procurar, procura. Lá no fundo está a resposta, a solução. É preciso pesquisar, decifrar o passado, com ele aprender, enquanto o futuro, cada vez mais próximo - e tão distante, eis que nunca chega - se torna cada vez mais escasso. Pesquisar. Decifrar. Encontrar.

A chave, a chave. Não tentar entender, mas mesmo assim procurar, aceitar. Engolir, sem regurgitar. Lá no fundo estão as respostas e a morte, mas com ela não nos preocupamos, dela nunca lembramos; mesmo sabendo, tendo a plena certeza que irá nos alcançar, fazemos de conta que somos ignorantes, que não sabíamos.

Enganar-se.

E todos nós, nestes corredores da loja de arqueólogos, não nos falamos. Somos unidos pela espécie mas afastados pelas circunstâncias de sermos a espécie de espécie que somos. Unidos, mas irremediavelmente distantes, cada um na sua busca pessoal, cada qual e tal como deveria ser, não me interrompa, não me grite! Cá estou, atarefado em tentar ignorar tudo isto, em busca do que já nem sei mais o que é.

Mas já não importa, pois tudo assim o é. Tolos são os que pensam como penso. Sozinhos, amargurados, alijados por suas próprias ações e convicções. Tentando provar que a busca irá gerar frutos, e tudo será a mais plena glória quando a chave obtivermos, as respostas estarão à palma da mão.

A mão, que estará velha e carcomida, enrugada e entrevada, retesada por artrites e artroses. Dependeremos de todos os outros que negligenciamos enquanto buscávamos a resposta. E a verdade é que nada mais importará, pois a resposta vem com o tempo, a busca será frutífera mas a maçã estará podre, fossilizada. E tombaremos, pois lá no fundo, juntamente com as respostas, ela também se encontra, a iniludível, a inescapável.

Daí, nada mais importará. E serviremos de matéria para futuras explorações, futuros fundos de pesquisa. Tentarão nos decifrar, dando continuidade ao ciclo eterno que é esta vida, esta morte. A cada dia que passa, a cada segundo que no ralo da espécie escoa, líquido viscoso e inútil.

E assim será.