-Bom dia, Gideon.
Bom dia, mestre. Vejo que arrancou seu patch mais uma vez.
(suspiro)
-Tô fudido, Gideon. Eu não consigo ficar sem meu café com cigarro. Aliás, não consigo ficar sem eles. E ter deixado o cinzeiro cheio de bitucas gigantes pelo final de semana não ajudou em nada.
Eu vi e acendi vários. Quer fogo pra esse aí?
-Quero, claro.
(Gideon escala o ombro de seu dono e emite uma rajada certeira de fogo na ponta do cigarro.)
(esfrego as barbas de Gideon, que rornrona feito um gato.)
-Agora, meu café.
(Vou até o banheiro e apanho a xícara fumegante do óleo negro. Volto, já baforando um trago.)
Mestre?
-Sim?
Porquê você gosta desse negócio, se diz que faz mal e todas as noites me acorda com você procurando freneticamente pelo respirador?
-Não sei. Sinceramente, não sei. Tudo começou com uma idéia idiota, pra variar.
Que idéia?
-A de me acabar mais rápido, Gideon. A de me matar.
Sinto em você que esta idéia está cada vez mais fraca.
-Sentes bem, meu caro. Sim, a idéia se foi, mas o vício continuou...porque sou burro e não parei a tempo.
E pretende parar?
-Sim, pretendo. Mas no momento eu não tô com cabeça pra isso...
Sua mente é um tanto confusa, de fato.
-Minha vida é um tanto confusa, meu caro. Sabes bem disso.
Que bagunça, isto cá dentro. Ainda mais a esta hora da manhã.
-Eu sei, eu sei. É a hora que a confusão mais reina. Aí vem a necessidade dessa porra aqui...
Sentes o fogo a consumir-te por dentro, não é?
-Sabes que sim.
E sabes onde o fogo arde com mais força.
-Sim, sei.
E saberia como apagá-lo...
-Não digo apagar, Gideon. Esta chama, nunca se extingue por completo.
Eu sei. Você a possui por ser como eu. Por agir como eu.
(Bebo mais um gole do café fortíssimo e trago mais uma baforada.)
-Não exatamente como você, meu caro. Você ao menos serve de decoração quando está inerte.
E você, serve de operador de máquinas e reparador de computadores quando precisam de você lá...
-E agora também, atleta nas horas vagas.
(Gideon se enrola em meu braço esquero, enquanto fumo mais um pouco, servindo-me também do café.)
Mestre? Você sabe o que está te acontecendo?
-Acho que sim. Presumo que o medicamento esteja de fato funcionando...não tenho mais tantas idéias erradas, não é?
Ainda há uma porção delas espalhadas por aqui.
-Eu sei. Como disse, não estou curado. Estou apenas começando a me rearranjar...
Vais procurar ajuda?
-Eu quero, Gideon, eu quero. Mas...falta um tanto de coragem ainda.
Coragem pode ser emprestada dos outros, às vezes.
(Olho lá pra fora: tudo escuro ainda. Sorvo mais um gole de café e mais um trago do cigarro.)
-Queria acreditar em você.
Mas não acredita? ainda mais agora, que tanto conversamos pelas manhãs?
-Você sabe o que eu quero dizer.
Sim, sei. Mas acho que você precisa de ajuda externa, neste caso. Aliás, sempre precisou, especificamente pra este caso.
-Eu sei, eu sei.
Então porquê não ages?
-Você também sabe porquê.
Mestre...sou apenas um figmento de sua imaginação. Que aliás, é das mais fertéis que existe. Invente um jeito.
(Dou o último gole no café, aspiro a última baforada do cigarro, que jogo no cinzeiro e vou ao banheiro escovar os dentes.)
-Um dia terei alguém feito você, Gideon. Um dia terei.
(Saio do banheiro, apago a luz, reina a escuridão no ambiente ainda. Gideon já está de pé em sua pose perpétua.)
-Adeus, meu velho. Até a volta.
Boa sorte Mestre. E até a volta.
(Ao sair, olho instintivamente para Raz'ksh, que emite rubro brilho em seus olhos. Bem sei que são dele as idéias erradas...a teimosia....mas ele anda um tanto enfraquecido, também.)
-Adeus a você também, Raz'ksh.
(Cerro a porta e desço as escadas, na penumbra. E dali pra rua, em dois segundos estou a caminho....)