Então, assim estava estabelecido. Olhou para dentro de si, procurou a tal chama, que alguns haviam dito ainda persistir. Não encontrou nada, além de trevas e vago cheiro de mofo, em seu interior. Como sempre. Agora, meses depois de ter-se submetido ao novo e, supostamente miraculoso medicamento, ainda não havia encontrado sentido algum em nada que fazia.
Pudera. Era esperar demais. Milagres? Só na Bíblia, dos Católicos.
E ele, nao era mais sequer agnóstico, nem sequer ateu. Acreditava que estava, para sempre, encerrado em uma espécie de hospício globular, onde todos eram felizes...não, bem sabia, seria hipocrisia de sua parte afirmar tamanha suposição. Haviam sim, muitas pessoas piores que ele...mas pouco adiantava, sabia bem, ter conhecimento de tal fato: não erguia de seus ombros o pesado fardo que os anos ali acumularam.
Parnate. Sulfato de tranilcipromina.
Meses e meses se passaram, não ocorreu tal milagre esperado por seu rigoroso médico, por seu Chefe, por seu Dono, pelo Advogado, por ninguém.
Nem por ele mesmo. Deixara, há muito, de acreditar em milagres.
Olhou ao redor, o relógio não havia dado as três da manhã. Procurou, nos seus arquivos, certas imagens relativas ao seu estado mental.
"That's how depression hits: one day you awake and you're afraid to live."
Bem, havia sido demitido, alguns dias antes, por não ter aguentado as pontas de um ataque de depressão, súbito e incontrolável, como de costume. Estava trajando o rosto da miséria, com seus hematomas costumais. E se lembrou, mais uma vez de certa frase, que o marcou para sempre:
"Man, I see in fight club the strongest and smartest men who've ever
lived. I see all this potential, and I see squandering. God damn it, an
entire generation pumping gas, waiting tables; slaves with white
collars. Advertising has us chasing cars and clothes, working jobs we
hate so we can buy shit we don't need. We're the middle children of
history, man. No purpose or place. We have no Great War. No Great
Depression. Our Great War's a spiritual war... our Great Depression is
our lives. We've all been raised on television to believe that one day
we'd all be millionaires, and movie gods, and rock stars. But we won't.
And we're slowly learning that fact. And we're very, very pissed off."
De fato. Por dez, quase onze anos, teve tal frase latente em sua cabeça, ao trabalhar onde trabalhava. E sempre se perguntou, porque diabos não me demito?
Por falta de coragem. Simples e pura. Por medo, de ao invés de procurar algum emprego que de fato estivesse relacionado à sua vocação, como diriam os espíritas, procuraria o local onde bem sabia, se vendiam "pinos" e "dolinhas".
Bem, agora, demitido, recebendo um certo seguro-desemprego, abandonado por seu Dono, achou que, de fato iria procurar tal caminho. Mas não o fez.
Foi até um supermercado. Comprou bom pão e bom vinho, e uma seleção de queijos envelhecidos. Roquefort, Gorgonzola. Camembert. Brie.
Comprou a morte gastronômica. Tiramina era o que não faltava ali.
Olhou, pela última vez, para Gideon, se lembrou ternamente de seu amigo que o ofereceu, não sendo sequer seu aniversário, nem dia das crianças, riu disto, pois sempre foi considerado, por muitos, uma eterna criança, ou pior ainda, frase cruel que ouvira uns dez anos antes, emitida por brincadeira, mas que o havia marcado profundamente nos sentimentos - um adolescente terminal.
Bem, terminal, de fato. Serviu-se de uma taça de vinho, que sempre detestou, mas era absolutamente necessário. E depois comeu diversas fatias dos queijos envelhecidos. Até se fartar. Quatro taças de vinho, o deixaram meio entontecido, normal, ainda mais para ele, que não consumia nada alcóolico desde...bem, nem se lembrava desde quando. Nunca fora muito fã de álcool.
Mas também, deixara de ser fã da vida. De seu Dono. Do Ogro, que agora nem mais com ele se falava, com ninguém. Ninguém estava a par do que estava prestes a acontecer, naquela madrugada.
Olhou para as caixas abertas do tal Parnate. Milagre que não aconteceu.
Olhou também para a caixa de Adalat, suposto "medicamento de emergência" para estes casos, que no dia anterior, havia despejado todas na privada, e dado descarga.
Agora sim, poderiam chamá-lo de covarde. O que não seria nenhuma novidade. Sempre fora. Sempre se escondera na tal Torre, escondera de todos que de fato era, sexualmente falando. Escondera do mundo suas músicas, pobres músicas, canções sem nem quê nem porquê. Escondera de todos a verdadeira identidade de seu próprio personagem, que era de fato, reflexo do criador. Um viado enrustido.
O que sobrava na vida, agora que havia sido demitido, por não ter acontecido o milagre prescrito e sim justamente o contrário? Como fora advertido por seu Dono, era a última gota. Bilhete azul.
Esperou. Dez minutos, nada. Quinze, nada. Vinte...
Começou a sentir-se estranho...uma dor de cabeça latente, pulsante e crescente, atingindo níveis fortíssimos, feito nenhuma enxaqueca havia causado-lhe antes. Não gritou. Não procurou o celular, que havia, de fato, espatifado na parede no dia anterior. Sentia como se a cabeça fosse explodir...bem como haviam previsto. Não conseguia sequer respirar. Adalat, não mais havia, e nem ele seria capaz de segurar a onda de uma ingestão de tamnha quantidade de tiramina.
O sangue começou a brotar-lhe dos ouvidos, das narinas, dos olhos...então era isto que significava um "crise hipertensiva" - sua pressão arterial, se fosse medida, deveria ter subido para 120 mmHg.
Depois disto, mais nada. Apenas deixou o cálice cair e se estilhaçar no chão.
Pois bem. Agora sim, poderiam chamá-lo de covarde. Agora sim, podiam encaminhálo ao IML.
Ninguém mais era seu Dono. Ninguém mais era seu Feitor.
Tudo havia falhado. Como ele mesmo previra. Como o Empresário havia advertido, se houvesse novamente uma crise de nervos, que não fosse contida pelo tal "milagre" - que nunca ocorrera, de fato.
Parnate.
Milagre que nunca ocorreu.
Agora, somente a escuridão reinava na Torre. Nenhum suspiro, nenhum respiro. Apenas o corpo jazia ali, em pose ridícula, com é comum em tais patéticos acontecimentos.
E assim foi. Não se sabe, quem foi , de fato que o descobriu ali, apenas que houve a eventual comoção de alguém que parte desta maneira. Mesmo esta promessa ele havia rompido, tamanho era seu desdém pelo que havia se tornado sua inexistência nesta vida, trinta e sete qanos, chamaram alguns de "crise de meia-idade", outros apenas cuspiram e não compareceram ao funeral, feito seu próprio pai, que havia advertido-o anos antes. Mesmo se estivesse vivo, não se importaria. Não era mais seu pai, desde 1993.
Conforme pedido de meses antes, Gabriel, o anjo caído, tocou, ao menos em seu celular, a musica "Angel", de Massive Attack. Fora seu pedido, caso o pior - ou melhor, dependendo do ponto de vista - acontecesse.
E assim foi. Um covarde a menos na terra. Uma inexistência que não mais precisaria ser tolerada. Nunca mais lhe exigiriam que fizesse planilhas, APs ou coisas que odiava fazer. Mas também nunca mais veria Gideon...que conforme nota defronte ao corpo inerte, era seu único desejo: que o enterrassem junto a ele.
Todos o odiaram, no fundo de seus corações. Por não ter tentado. Por ter falhado em tudo. Por não ter dado ouvidos a ninguém e se encerrado em sua torre, munido da última refeição.
E dali todos se foram. A vida continua, para os restantes.