quarta-feira, 30 de julho de 2014

Gideon.

As horas passam, passam-se dias, meses, anos. Passam os efeitos e os sub-efeitos. O que restou? De que serviu? Sei lá, não poderia dizer. 

Anos e mais anos. 

Dia ruim, dia bom, tornando-se deveras bom, por conta de um contato do além mundo, do universo de dez anos atrás. Dez anos! Puta que pariu, tempo vai, tempo voa. 

Muito se diz, muito pode-se falar, do que foi feito e desfeito, nestes tempos de desordem. Mais fiz, nada, que fiz, tudo. Ou tudo, de ruim, foi feito. Até então. Mas, de repente, vem a coisa, vem a aposta: todas fichas na mesa. Pois sim. Foi feito, está feito. 

Algo acontece. E se algo acontece, já é bom. Assim me diz, Gideon, em sua pose perpétua, para os demais transeuntes, apenas peça decorativa; para mim é muito mais, sempre foi muito mais. Sempre representou algo...além da vida ordinária. 

Estou aqui, devo admitir, de vontade própria. Sempre foi. Mas, olho para Gideon, vejo nele um brilho nos olhos que não havia até então. Fantasia? Foda-se. Ele, se faz vivo, nesta hora da noite. Se faz vivo e me encara, mas não como o predador que deveras é. 

Sabe o que quero. Se transforma, perante meus olhos, em coisa viva e ululante, e como ode triunfal ao acaso, expele uma baforada de fogo, que queima o restante das merdas que possuo, em minha torre. Faz cinzas dos livros e apostilas, de concursos púbicos e hediondos. E me olha, de soslaio, com cara de bom amigo... Que sempre foi. 

Faz-se crescer, tamanho ideal para meu transporte. Não preciso de sela para montá-lo. Nunca precisei. Basta querer, como se diz. E ele bufa, mais fogo de suas entranhas, assim como das minhas. Fogo. Fogo! Em tudo que não presta! Em coisas impressas, em ditas apostilas e tratados sobre a constituição. Fodam-se todos os tratados, foda-se a constituição, fodam-se os concursos. 

Não temos dó das telhas, que se arrebentam quando passamos por elas. De fora da torre, a noite é sublime, um tanto fria, mas deveras bonita. Poucas estrelas, difusas, no céu deste inverno. Arrepio, mas não de medo. A velocidade é imensa, e sei me segurar no lombo de meu dragão, agora não mais em pose perpétua, mas sim, obra viva, cheia de fogo em seu interior. 

Assim como no meu interior. Tudo arde, tudo dói, mas é como se estivesse sendo arrebentadas velhas correntes, velhos pesadelos. As nuvens, passam por nós em incrível velocidade. Gideon, ele sabe para onde me levar. Não precisa de cabresto, não precisa de chicote: sabe que somos um só, mente e corpo, mentes unidas por estranhos pensamentos, mas também unidas, por anos e anos de convivência. Por saber, ele, Gideon, quem sou de fato. Quem sou, em meus sonhos mais audazes. E para lá me transporta, sem embaraço algum. Sem obstáculos, quer seja eles reais ou não, mentais ou físicos.

Em dado momento, nos deparamos com a visão da Terra, terra de ninguém, onde todos são loucos, mas nenhum tem um dragão como o meu. Gideon. Que me transporta, velozmente para onde sempre quis ir. Sempre. Sempre. Ele sabe, nós sabemos. Somos ambos uma única coisa, unida em mente e alma. Unidos por meio deste sonho audaz, que tanto me vale a pena. Vale a pena viver, para se ter semelhante sensação. 

Voar, sem obstáculos. Voar, sem asas. Voar sem sela, sem ter que me agarrar, apenas fixamente unido ao meu dragão, Gideon. Visões fantásticas me aguardam. Tudo que sempre quis e sonhei. Ele sabe, eu sei: sabemos. Para onde chegar, como chegar. Eu não sabia, devo confessar, mas ele sim, sempre soube. E nesta hora, nesta estranha hora, fez-se real, tangível, palpável, tudo. Tudo que sempre quis. Ele sabe. E agora, eu sei. 

Assim como ele voa, voam as horas, voam os minutos, o tempo inteiro, a vida inteira. Trinta e sete anos. Esperando por este momento. Valeu a pena, esperar. Deveras.

Voar. Gideon sabe, e expele, triunfante, mais uma rajada do fogo mais iincinerante já emitido por um dragão. Não existe aqui nenhum São Jorge, que irá lutar contra meu dragão. Existimos, apenas ele e eu, eu e ele, uma coisa só, unidos para sempre neste devaneio, neste momento de loucura. Mas repleto de lucidez. Ele sabe, eu sei. Sabemos. Sempre soubemos.

Além do tempo e do espaço, eu vou de passageiro. Além da vida e da morte, transcendendo tudo: tempo e espaço, idade e existência. Não existe tamanha sensação, nada igual a este momento. Voamos, velozmente, atravessando continentes e montanhas, riachos e oceanos, pradarias e tundras, não importa. Ele sabe, eu sei, para onde vamos.

Gideon não precisa de Mestre, não sou seu Mestre, nem seu Dono. Ele sou eu, eu sou ele. Sempre fomos, em noites e noites afora, mas esta é especial. Pois ele ruge, mas é de prazer. Por saber, que eu, seu até então dono, sou como ele. Sou ele. Somos. Apenas somos. Um só. Ele sabe, eu sei. Nãoexistem horas, não existem relógios. Não existe salário que pague por isto. Nada, nada se compara a isto. 

Assim como ele, eu emito fogo de minhas entranhas, e sei o que estou a queimar, em tal momento pírico: queime, Monstro, queime, Coisa. Vão-se embora daqui. Para sempre. 

Assim como eu, Gideon emite mais uma bola de fogo, queimando um último impedimento que havia no caminho: a solidão, deste ser, desta mistura de homem e dragão. Não estás sozinho, ele me diz mentalmente. E eu sei, de fato. Agora eu sei. 

Quilômetros, milhas, nós: atravessamos tudo, sem parar para nenhum descanso. Não sinto frio, não sinto medo. Não mais. Sinto o vento, ameaçando me derrubar, mas não consegue: nada conseguiria, não agora, não nesta noite. Eu sei. Ele sabe. Sabemos. E para lá vamos. Voando, mais rápido que aviões, mais rápido que o tempo emitido pelos relógios, pelos cartões de ponto, computadores com defeitos e horas e mais horas de inatividade. Perpétua...ou quase.

Sei que estou me movendo, e muito rápido. Não tenho velocímetro, mas pouco importa. Gideon sabe o caminho, não precisa de instrumentos de navegação de nenhuma sorte. Precisa apenas, de mim. E eu estou com ele e não abro. Eu e ele, ele e eu, uma coisa só, neste embaralhado confuso de linhas, de texto. 

Meu dragão, sabe para onde quero ir. É onde sempre quis ir também, mas nunca pôde, não antes deste momento, não antes desta hora, deste dia. Meu dragão, respira fogo, é fogo, assim como eu sou agora. 

Não existem mais Feitores, não existem mais Donos, não existe Advogado, Controller, não existe mais a inexistência de ser o que fui - por tantos e tantos anos. Eu sou como um dragão, como Gideon, nesta noite maluca. Estou a voar, e sei bem para onde. Assim como ele sabe. 

Longe, longe de tudo que me fez mal, durante todos estes anos em que não existi, mas fui a sombra, a Coisa, o Monstro. Chamariam Gideon de monstro, mas nao é! Assim com ele, não sou. Não mais. 

Gideon sabe o caminho. E para lá me leva. Longe dos cartões de ponto, das horas perdidas em frente à inutilidade de ser, deveras, um artigo de decoração, feito o próprio Gideon é, para os demais transeuntes, que nem sequer conseguem enxergá-lo agora, em sua forma final e definitiva, nesta hora louca da noite, da vida. 

Ele sabe o caminho. E agora, pela primeira vez em tantos anos, também sei. E digo, urro, foda-se o resto, foda-se o Dono, foda-se o salário. 

Nada, nada se compara a isto. 

Gideon sabe o caminho.

E para lá vou.